Em busca do poder de cura da floresta

O mateiro Osmar Barbosa mostra vegetação para integrantes do projeto, no igarapé do Mucura, um braço do rio Cuieiras, afluente do rio Negro, no Amazonas. Foto: Luiza Sigulem
O mateiro Osmar Barbosa mostra vegetação para integrantes do projeto, no igarapé do Mucura, um braço do rio Cuieiras, afluente do rio Negro, no Amazonas. Foto: Luiza Sigulem

Cena 1: o cientista americano Robert Gallo, um dos descobridores do vírus da Aids, navega no barco Escola da Natureza pelo rio Negro, no Amazonas. Impressionado com a diversidade da floresta em ambas as margens do rio, Gallo comenta com o oncologista brasileiro Drauzio Varella: “A biodiversidade aqui não é teórica, é visível. Nessas margens, não é fácil ver duas árvores da mesma espécie. Vocês fazem pesquisas sistemáticas da atividade farmacológica dessas plantas?”

Cena 2: o mateiro Osmar Barbosa vibra ao encontrar flores com pétalas brancas e miolo colorido em trilha às margens do igarapé do Mucura, um braço do rio Cuieiras, afluente do rio Negro. “É raro encontrar essas flores, ainda mais em uma árvore fácil de subir”, diz o mateiro para o farmacêutico Sergio Frana. “Se o Mateus estivesse aqui, iria endoidar”, completa, referindo-se ao botânico Mateus Paciencia, que não participa da expedição por estar se recuperando de uma cirurgia no joelho.

Mais de duas décadas separam as duas cenas. No começo dos anos 1990, a viagem do cientista americano pela Amazônia era uma espécie de bônus pela participação em um simpósio sobre biotecnologia em São Paulo. “Oferecer o passeio pela Amazônia era uma forma de atrair cientistas de renome para o simpósio”, lembra Drauzio. “Mas a pergunta de Robert Gallo ficou na minha cabeça. Por que não pesquisamos?” De volta a São Paulo, Drauzio procurou João Carlos Di Genio, reitor da Unip, universidade que havia promovido o seminário e era dona do barco Escola da Natureza. Recebeu sinal verde para a ideia. Não demorou para lançar o Projeto Rio Negro, com o objetivo de pesquisar princípios ativos contra células tumorais e contra bactérias resistentes aos antibióticos tradicionais. O primeiro passo foi dado pela farmacêutica Ivana Suffredini, que foi encarregada de descobrir como se faz esse tipo de pesquisa em uma instituição de peso: o National Cancer Institute, na cidade americana de Frederick, em Maryland.

Galhos floridos cortados na copa da árvore são colhidos no meio da floresta, onde recebem identificação preliminar. Foto: Luiza Sigulem
Galhos floridos cortados na copa da árvore são colhidos no meio da floresta. Foto: Luiza Sigulem

Hoje com mais de 150 expedições na agenda, o Projeto Rio Negro está completando duas décadas. O barco Escola da Natureza, que transportou a equipe do projeto em sua mais recente expedição, é o mesmo no qual viajou Robert Gallo: uma embarcação de madeira, típica da Amazônia, de 60 pés (pouco mais de 18 metros), adaptada para abrigar 16 passageiros e três tripulantes. Ivana, que tinha acabado de se formar em Farmácia quando foi despachada para o National Cancer Institute, agora é professora doutora. E uma das principais pesquisadoras do projeto, que já identificou cerca de quatro mil espécies de plantas e produziu mais de dois mil extratos vegetais. Desse total, 120 extratos apresentaram algum nível de atividade antitumoral ou antibacteriana. “Elegemos cinco extratos prioritários para serem trabalhados. Eles foram ativos contra células tumorais humanas de mama e de próstata”, diz Ivana. “Estamos na fase de estudar quimicamente as frações desses extratos para saber qual substância apresenta atividade antitumoral.”

Ivana estava por perto quando o mateiro Osmar anunciou o achado das flores com a maior desenvoltura. “É uma Vochysia, da família Vochysiaceae, conhecida popularmente como mandioqueira. E está fácil de subir.” Osmar é um mateiro singular. Conhece muitas plantas pelo nome popular e pelo científico também. Nascido em Canutama, às margens do rio Purus, ele começou a trabalhar ainda criança, em um seringal, ao lado do pai. “Estava com dez anos e usava uma espingarda maior do que eu”. Mais tarde, virou operador de motosserra. “Era só estrago. Eu não tinha noção.” Aos 26 anos, Osmar mudou-se para Manaus, onde completou o ensino médio. Lá, trabalhou no laboratório de uma fábrica de cerveja e em um programa de cooperação científica que estudava a Amazônia, onde começou a aprender a terminologia científica das plantas. “Os nomes populares eu já conhecia.” Há sete anos no Projeto Rio Negro, hoje ele também é técnico do laboratório do programa em Manaus.

Para coletar galhos floridos da planta, Osmar precisava alcançar a copa da árvore, que tem cerca de 15 metros de altura. Sem pestanejar, decidiu escalar uma árvore próxima. Com a ajuda de uma peconha, uma espécie de laço rudimentar de tecido, ele apoiou os pés no tronco da árvore e, usando a força das pernas e dos braços, subiu em uma velocidade impressionante. Lá em cima, montou quatro partes do cabo de alumínio de um podão, que ficou longo o suficiente para atingir a copa da árvore florida. Havia uma distância de cerca de cinco metros entre as duas árvores. Assim que Osmar podou o primeiro galho repleto de flores, Sergio o recolheu do chão: “Este vai para o herbário”.

As equipes fazem a  identificação ainda na floresta. Foto: Luiza Sigulem
Membros da equipe fazem a identificação ainda na floresta. Foto: Luiza Sigulem

Projetado originalmente como coleção de referência para o projeto, o herbário instalado na avenida Paulista, em São Paulo, acabou por tornar-se uma instituição autônoma. Nele se encontram, devidamente identificados, cerca de 12 mil exemplares de plantas secas, metade delas amazônicas. A outra parte vem de coletas feitas em distintas regiões do País ou de intercâmbio com outros herbários. Na trilha às margens do igarapé do Mucura, os galhos podados por Osmar são recolhidos, catalogados e ensacados. Mais tarde, uma segunda triagem será feita no barco, onde as plantas destinadas ao herbário serão prensadas e armazenadas em cartolinas de tamanho padrão. A identificação definitiva fica sempre a cargo do botânico Mateus, que é o curador do herbário.

Mais tarde, no laboratório da avenida Paulista, em São Paulo, o botânico Mateus Paciencia acerta a identificação: a família está correta, é Vochysiaceae. O gênero, porém, não é Vochysia e sim Qualea paraensis. Foto: Luiza Sigulem
Mais tarde, no laboratório da avenida Paulista, em São Paulo, o botânico Mateus Paciencia acerta a identificação: a família está correta, é Vochysiaceae. O gênero, porém, não é Vochysia e sim Qualea paraensis. Foto: Luiza Sigulem


A trilha onde as flores foram encontradas está dentro de três parcelas de terra, de dez mil metros quadrados cada uma, pesquisadas de forma sistemática pelo projeto desde que foram estabelecidas, em 2002. Elas ficam na propriedade de uma família de ribeirinhos. “Dentro das parcelas, todas as árvores acima de dez centímetros de diâmetro a uma altura de um metro e meio do chão têm placa com número de referência e estão mapeadas”, diz Drauzio, que dirige o projeto. As coletas de plantas não se limitam às parcelas, mas há vantagens quando feitas na área demarcada. Coordenador do projeto, Wilson Malavazi destaca a principal delas: “Se for preciso testar de novo as propriedades de uma planta coletada dentro das parcelas, fica mais fácil para localizá-la”. 

De qualquer forma, em todas as coletas a localização exata da planta é marcada, com auxílio de um GPS. É o que foi feito com os galhos floridos e com outra vegetação cheia de bolinhas, identificada como Protium sp, da família Burseraceae, encontrada pouco depois. Ao contrário das flores, destinadas ao herbário, a planta com bolinhas foi coletada para que as substâncias que a compõem sejam pesquisadas. A primeira etapa dessa pesquisa é a produção do extrato da planta, que é picada, moída e secada em uma estufa, com temperatura controlada. Na sequência, esse material vegetal é misturado a solventes, em laboratório, para que seus componentes químicos sejam extraídos. Ivana lembra que o processo de extração é o básico: “É o primeiro degrau de uma série de experimentos. Uma vez obtido, o extrato é seco. A partir daí, são feitas novas concentrações, a serem aplicadas em bactérias patológicas, em células tumorais”.

A embarcação usada pela equipe do Projeto Rio Negro é a mesma na qual navegou o cientista Robert Gallo, um dos descobridores do vírus da Aids. Foto: Luiza Sigulem
A embarcação usada pela equipe do Projeto Rio Negro é a mesma na qual navegou o cientista Robert Gallo, um dos descobridores do vírus da Aids. Foto: Luiza Sigulem

No meio do caminho, incidentes podem acontecer. A planta com bolinhas, por exemplo, já havia sido coletada durante uma expedição anterior, em outubro de 2015. Depois de ensacada, ela foi enviada para o laboratório de Manaus. Na fase inicial da produção, a estufa que deveria secá-la desregulou e torrou todas as amostras. Um episódio parecido aconteceu em junho de 1998, quando o processo de secagem era feito dentro do próprio barco, em uma estufa de madeira, alimentada por botijão a gás. Durante o processo, a estufa simplesmente pegou fogo. As chamas foram logo controladas, ninguém se machucou, mas uma coleta feita na praia da Lua, próximo a Manaus, virou cinza.

Tempos depois, a equipe do Projeto Rio Negro voltou a procurar na praia da Lua a envireira, como é conhecida popularmente uma das plantas queimadas no incêndio da estufa. Não teve sucesso. “Na época da coleta, a praia era preservada. Com o passar do tempo, começou a ser ocupada. Hoje a localização no GPS da planta fica no meio do rio”, conta Sergio. “A mudança tem a ver com a ocupação da praia e com a própria natureza. A água vai batendo nas encostas, derrubando o que está lá e jogando para dentro do rio. A cada ano a gente vê o rio ficar um pouco mais largo e menos fundo.” De qualquer forma, como a envireira se distribui por outros pontos da Amazônia, em algum momento será reencontrada.

Nos 20 anos do Projeto Rio Negro um detalhe chama a atenção: com o passar do tempo, em vez de diminuir, a produção de extratos segue de forma acelerada. O fato está relacionado com a diversidade amazônica e também com o envolvimento de novos atores. Ao núcleo de pesquisadores diretamente vinculados ao projeto, vêm juntando-se estudantes com trabalhos específicos. “Passamos a trabalhar com estudantes de graduação, fazendo iniciação científica, e na formação de mestres e doutores”, afirma Ivana. “Tem sido muito prazeroso. Isso refletiu diretamente no número de publicações científicas apresentadas pelo grupo.” Até agora, são 67 artigos científicos publicados, 42 deles em periódicos internacionais.

A bordo do barco Escola da Natureza, o mateiro Osmar Barbosa e o farmacêutico Sergio Frana embalam parte da coleta. Foto: Luiza Sigulem
A bordo do barco Escola da Natureza, o mateiro Osmar Barbosa e o farmacêutico Sergio Frana embalam parte da coleta. Foto: Luiza Sigulem

 

No rol de artigos científicos já aceitos para publicação está um sobre o impacto causado pela bactéria Escherichia coli na produção de animais de corte no Brasil, da veterinária Lívia Camargo, em parceria com Ivana. Agora doutoranda, Lívia procura desde a graduação uma planta capaz de inibir a atuação dessa bactéria em infecções em animais de pequeno porte. A partir de experimentos em laboratório, ela foi afunilando as possibilidades e atualmente pesquisa a capacidade da planta Buchenavia sp, da família Combretaceae, de inibir a bactéria Escherichia coli, que mora no intestino dos animais. Conhecida pelo nome popular de cuiarana ou tanibuca, essa planta já revelou atividade contra a bactéria. Como Lívia precisa de mais extrato para os experimentos no laboratório, a turma do Projeto Rio Negro embrenhou-se em uma das 400 ilhas do arquipélago de Anavilhanas até encontrar a vegetação.

A matéria-prima para as pesquisas é coletada na região do rio Negro. Imagem: Arte/Brasileiros
A matéria-prima para as pesquisas é coletada na região do rio Negro. Imagem: Arte/Brasileiros

Além da busca na floresta, que demanda uma boa dose de energia física e de trabalho braçal, o Projeto Rio Negro envolve a atividade contínua e meticulosa dos cientistas, em especial no herbário e nos laboratórios de extração, triagem antitumoral, microbiologia e fitoquímica instalados na avenida Paulista. Foi no herbário que o botânico Mateus, aquele que não participou da expedição por estar se recuperando de uma cirurgia, analisou os galhos floridos coletados na trilha próxima ao igarapé do Mucura. Concluiu que o mateiro Osmar acertara em cheio o nome de família da planta, Vochysiaceae, assim como o nome popular, mandioqueira. O gênero, no entanto, não era Vochysia e sim Qualea paraensis. Espécie tipicamente amazônica, a vegetação foi descrita pela primeira vez em 1915, por um precursor das atuais pesquisas na região: o botânico Adolpho Ducke, um dos mais renomados do Brasil.

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