Quem é Chaim Litewski? Para os cinéfilos e interessados em história, trata-se do diretor do premiado documentário Cidadão Boilesen, lançado no ano passado. Mas, assim como o protagonista do filme, não era tão somente um bem-sucedido empresário, Litewski é muito mais que o cineasta que trouxe à luz uma obscura figura da ditadura.

Chefe do Departamento de Televisão da Organização das Nações Unidas (ONU), ele construiu, ao longo das últimas três décadas, uma sólida carreira na entidade. Justamente por isso, demorou 16 anos para terminar Cidadão Boilesen, vencedor do festival “É Tudo Verdade” em 2009, entre outros prêmios. Litewski teve de conciliar a realização do filme com as exigências e a rotina de seu cargo na ONU. Se não fosse uma produção totalmente independente, o cineasta e jornalista teria de entregar o filme dentro de um prazo (o que seria complicado) e talvez sofresse alguma interferência no conteúdo da obra (o que seria indesejável). Por isso, Litewski arregaçou as mangas, chamou amigos – como o produtor e editor Pedro Asbeg – para participarem do projeto, e bancou ele mesmo toda a produção do documentário.
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Apesar da montagem moderna, que torna o filme mais leve e palatável, Cidadão Boilesen trata de um tema pesado: a vida de Henning Albert Boilesen. Empresário dinamarquês radicado no Brasil, ele não apenas foi um dos grandes financiadores da Operação Bandeirante (OBAN), aparato de repressão montado pela ditadura militar para combater a oposição ao regime em São Paulo, como também gostava de assistir às sessões de tortura. Pelo menos é o que revelam os vários depoimentos e documentos apresentados no filme. Boilesen, presidente do grupo Ultra, foi morto por integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), em 15 de setembro de 1971. Mergulhar no submundo da repressão talvez fosse uma experiência ainda mais dolorosa para Litewski, se ele já não conhecesse de perto o sofrimento humano.

Uma lente para a dor
Em seu escritório improvisado em Nova York (o prédio principal da ONU passa por reformas), Litewski falou sobre sua trajetória. Formado em Comunicação, com ênfase em propaganda e conflito, pela Polytechnic of Central London, desde criança ele se interessou por questões relativas à guerra. Em grande parte devido ao fato de seus pais, o polonês Markus e a lituana Musia, serem sobreviventes de campos de concentração. “Guerra e conflito estão muito permeados na minha vida”, diz. “Tanto eu quanto o meu irmão, Rachmiel, sempre quisemos entender por que as pessoas fazem esse tipo de coisa umas com as outras.”

Litewski trabalhou para a sucursal da Rede Globo, em Londres, entre 1983 e 1985. Voltou ao Brasil ainda ligado à emissora e, entre outras experiências profissionais, ficou por aqui até 1991, quando foi convidado pela ONU para trabalhar em Nova York. Adquiriu uma vasta experiência na cobertura de guerras e tragédias, sobretudo na mais recente ocupação. Esteve em algumas das mais violentas e remotas zonas de conflito da América Latina, África e Ásia, além da ex-Iugoslávia. Encontrou a resposta que procurava? “Quanto mais velho eu fico, mais difícil se torna explicar a questão”, resume. “É complicado adotar meios cartesianos e lógicos para entender guerras e atrocidades.” Boa parte dessa conclusão é calcada naquela que Litewski considera a experiência mais marcante de sua vida: testemunhar o genocídio em Ruanda, na África.

Entre abril e julho de 1994, cerca de um milhão de pessoas foram mortas naquele país durante confrontos entre as etnias hutu e tutsi. Em visita a Ruanda, na companhia do Comissário de Direitos Humanos da ONU na época, Litewski se viu em meio ao massacre. Ele comenta: “Posso dizer que a minha vida se divide em antes e depois do genocídio. Eu já tinha vasta experiência em estar em conflitos, mas aquilo foi diferente pela maneira escancarada como ocorreu”. Abalado, o jornalista se submeteu a tratamento psiquiátrico quando voltou a Nova York, mas acredita que o episódio deixou sequelas: “Eu era mais alegre, talvez extrovertido. Depois, virei uma pessoa mais séria e introvertida”.

Litewski começou na ONU como produtor de reportagens para TV. Hoje, acumula outras quatro funções: gerencia a cobertura do que acontece na sede da entidade (como reuniões da assembleia geral e do conselho de segurança), comanda uma pequena agência de notícias – que recebe material diário de vários países e distribui como noticiário para veículos de mídia – e dirige também o webcasting da ONU e um canal de TV da organização, transmitido para a região de Nova York.

Hoje, o jornalista chefia a maioria das coberturas a partir de seu escritório. O trauma na África, porém, não foi capaz de afastá-lo da essência de seu trabalho: usar a câmera como um meio de comunicação entre vítimas de tragédias e o resto do mundo. “Sempre tentei fazer com que a história fosse contada por intermédio dos olhos de alguém que estivesse no meio dos acontecimentos”, explica. Após Ruanda, Litewski esteve pessoalmente em outras coberturas que também considera marcantes, como a do tsunami na Ásia, em 2004, e do terremoto no norte do Paquistão, um ano depois. Ele lembra que, como todo o material jornalístico produzido pela ONU é distribuído e editado livremente pelos meios de comunicação, o cuidado com as imagens deve ser redobrado. “Você tem 192 chefes, que são os países membros, e não faria sentido ofender alguns deles.”

Muitas vezes, Litewski ocultou da família o destino de suas viagens. Sempre para poupá-la de maiores preocupações. Afinal, apesar de todo o esquema de proteção que cerca integrantes da ONU durante as missões, não foram poucos os riscos que correu. “Já estive em meio a tiroteios”, lembra. “Alguns dos piores foram na Tchetchênia e em El Salvador. Meu corpo desenvolveu até uma clara reação física para situações de perigo: libera um odor muito forte.”

Aos 55 anos, Litewski vive na capital do mundo com a mulher, Angela Parente, de 50 anos, e os filhos Leon e Gabriel, de 13 e 17 anos. Um lugar muito diferente de Nilópolis (RJ), na Baixada Fluminense, onde nasceu e cresceu, em meio à importante comunidade judaica – iniciada ainda nos anos 1920 na cidade -, numa época em que o nome do município nem de longe remetia aos atuais índices de violência. Com apenas dez anos, acompanhou com interesse o golpe militar. “Foi o primeiro, digamos, conflito que de fato me interessou”, lembra. “Depois veio a Guerra do Vietnã. Em casa, estávamos sempre ligados no que acontecia no mundo, ouvíamos rádios estrangeiras por meio de ondas curtas. Além disso, com a repressão, a imprensa brasileira da época acabava cobrindo melhor o que acontecia fora do País.”

Mas não apenas as disputas que envolvem armas, política e questões sociais interessavam ao garoto Chaim. Ele também era fã daquelas ocorridas nos gramados e que, para muita gente, são uma alegoria da guerra. Antes de ir à Inglaterra, em 1974, o vascaíno Litewski frequentava o Maracanã na época de ouro do estádio, quando ali se apresentavam o Santos, de Pelé, e o Botafogo, de Garrincha, para ficar apenas nas duas equipes mais notáveis. O gosto pelo futebol acompanha o jornalista, que, mesmo em Nova York, não deixa de seguir as agruras enfrentadas por seu Vasco, que recém retorna à elite do futebol nacional. A dupla conflito-futebol esteve presente também na carreira de Litewski, que cobria eventos esportivos para a Globo, quando estava em Londres. O jornalista participou da cobertura das Copas de 1982, na Espanha, e 1986, no México. Esteve presente também em Olimpíadas, como a de 1984, em Los Angeles.

Foi naquela época que recebeu uma curiosa incumbência de seu chefe todo-poderoso no Brasil. “Em 1984, acho, o Roberto Marinho comprou uma égua peruana e decidiu chamá-la de Miss Globo”, conta. “Ela saltava e competia nos grandes eventos de hipismo na Europa, e fiquei responsável por cobrir a égua, no sentido jornalístico, não agropecuário. Toda vez que a Miss Globo competia, a gente tinha de mandar uma matéria para o Jornal Nacional. Só que a Miss Globo raramente, ou jamais, ganhava. Mesmo assim, todas as matérias foram veiculadas. Eu era a pessoa que seguia a égua pela Europa.”

Em 1968, Litewski viu um certo Boilesen na televisão e ficou intrigado. O que aquele renomado empresário, presidente do grupo Ultra, fazia cercado de militares? A curiosidade acerca daquela figura nunca mais o abandonou. Ainda adolescente, passou a colecionar o que saía a respeito de Boilesen na imprensa. Mas a ideia do filme começou a tomar forma só em 1993, quando, em uma conversa de bar com o amigo dinamarquês Niels Kohl, decidiu que era hora de fazer um documentário. A busca por informações sobre Boilesen tornou-se um hobby: “Cada descoberta era uma enorme fonte de satisfação para mim. Durante a pesquisa e o processo de produção, a cada nova coisa que acontecia, a cada nova entrevista, nova fala, nova revelação, descoberta de documento oficial, me dava muito prazer”.

Cidadão Boilesen foca a personalidade polarizada do empresário, capaz de ser considerado bom pai, amigo e profissional e, ao mesmo tempo, frequentar sessões de tortura. O fato de duas personalidades conviverem, aparentemente, de modo tão extremo na mesma pessoa, sempre fascinou Litewski. “Ele tinha carisma”, afirma. “Mas outros diziam que era medíocre, grosseiro e violento. Eu acho que ele era tudo isso e muito mais, como todos nós somos. Tentamos viver nossas vidas com algum equilíbrio, de modo linear. Eu não sei se ele também tentou, mas os extremos dele eram muito mais visíveis.”

O jornalista/cineasta confessa que nunca imaginou que seu hobby teria tanta repercussão, bem como tantas críticas favoráveis na imprensa. Em uma estimativa, segundo ele pouco precisa, acredita ter investido em torno de US$100 mil na realização de Cidadão Boilesen. O ponto final nas pesquisas veio com a chegada de um documento do Serviço Nacional de Informações (SNI). “A pasta do SNI corroborou o que a gente já sabia, que Boilesen era um dos fundadores da Operação Bandeirantes e assistia às sessões de tortura. O fato de que aquilo era mandado para o (então presidente) Médici, ajuda a confirmar que não eram informações falsas, não é?”

O próximo passo de Litewski é o lançamento de uma versão mais longa do documentário, em DVD. Está em negociação com uma produtora. É a chance que o jornalista/cineasta aguarda para mostrar, com mais detalhes, alguns dos documentos apresentados no filme. Além disso, espera compartilhar novas revelações. “Tenho um ótimo documento, que mostra a relação que o Boilesen tinha com a Folha de S. Paulo“, adianta. “Ele era muito próximo do (Otávio) Frias, e tinha um controle sobre a mídia em geral. Proibiu a imprensa de noticiar, por exemplo, um produto chamado ‘xisto betuminoso’, porque poderia afetar as vendas de gás.”

Em uma de suas entrevistas, Litewski afirmou que fazer o documentário foi uma espécie de “exorcismo”. Para que o Brasil faça o mesmo, o exorcizado jornalista indica o caminho: “Abram os arquivos da ditadura”.


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