Hotel Cambridge: ocupar e reexistir

O salão de beleza Espaço Vip, instalado no térreo do edifício, é uma das ações colaborativas dos moradores
O salão de beleza Espaço Vip, instalado no térreo do edifício, é uma das ações colaborativas dos moradores

Abandonado havia dez anos no coração de São Paulo, o Hotel Cambridge foi ocupado na noite de 22 de novembro de 2012 por militantes do MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro). Situado no primeiro quarteirão da avenida 9 de Julho, vizinho do Vale do Anhangabaú, o edifício de 15 andares dispõe de 241 quartos e 136 banheiros. Espaços que demandaram um mutirão de limpeza que resultou em 15 toneladas de lixo, removidas em caçambas de quase 60 caminhões cedidos pela Prefeitura de São Paulo, proprietária do imóvel.

Depois de realizada essa força-tarefa, o Hotel Cambridge passou a acolher mais de 170 famílias e cerca de 500 pessoas, entre elas mais de 160 crianças. Dois anos mais tarde, entre novembro e dezembro de 2014, os moradores da ocupação foram protagonistas de uma ação inspiradora: a produção, no interior do edifício, de um longa-metragem da cineasta paulistana Eliane Caffé.

Era o Hotel Cambridge, novo filme da autora de trabalhos como Kenoma (1999) e O Sol do Meio-Dia (2009), foi um dos artífices da crescente mobilização da sociedade civil em apoio à luta dos moradores da ocupação. Iniciativas que, hoje, somam 15 projetos diversos, como uma oficina de costura, a criação de um brechó, a instalação no andar térreo de um salão de cabeleireiros e de uma confeitaria de bolos e o cultivo de hortas comunitárias no terraço do edifício.

O artista plástico Ícaro Lira participa de uma das oficinas para crianças do projeto Dulcineia Catadora, uma das atividades de sua residência
O artista plástico Ícaro Lira participa de uma das oficinas para crianças do projeto Dulcineia Catadora, uma das atividades de sua residência

Com a chegada de Eliane e sua equipe de produção, as intervenções culturais no hotel, que, segundo a Prefeitura, terá, de fato, fins habitacionais para cidadãos de baixa renda, também são ascendentes. Durante a realização do filme, por meio de sua irmã, a arquiteta Carla Caffé (também diretora de arte de filmes como Central do Brasil, de Walter Salles, e Narradores de Javé, de Eliane), a cineasta articulou parceria com 21 alunos de Arquitetura da Escola da Cidade, instituição também sediada no centro, criada em 2002 por Rosa Artigas, Anália Amorim, Rafik Farah, Ricardo Cunha e Ciro Pirondi.

Responsáveis pela cenografia de Era o Hotel Cambridge, os estudantes da Escola da Cidade desenvolveram a direção de arte do filme com moradores da ocupação. Além deles, voluntários – a sobrinha de Eliane, Juliana Caffé, curadora de artes visuais que atua no núcleo editorial do Instituto Videobrasil, e o coletivo Dulcineia Catadora, projeto idealizado pela artista Lúcia Rosa, que confecciona livretos em papelão em uma cooperativa de recicladores no bairro do Glicério –transformaram o dia a dia da ocupação e preencheram espaços antes amorfos com muita cor e vida.

Desde janeiro deste ano, Juliana e o amigo Yudi Rafael, cientista social e também curador de artes visuais, desenvolvem um projeto de residência artística que, por meio do primeiro artista convidado, o cearense Ícaro Lira, tem expandido as intervenções culturais no Cambridge. Em vez de ambicionar a criação de obras de arte dentro do hotel, Lira tem aproximado do espaço uma série de colaboradores das mais diversas frentes: reorganizou o cineclube da ocupação, onde, após a exibição dos filmes, promove debates; intermediou as ações do coletivo de Lúcia Rosa; instalou e catalogou uma biblioteca comunitária; realizou encontros com acadêmicos, como o filósofo Peter Pal Palbert; e convidou um grupo de psicanálise para atender moradores da ocupação.
Dividido em quatro períodos trimestrais, que será concluído em janeiro de 2017, o projeto de residência artística receberá, além de Lira, os artistas visuais Jaime Lauriano, Raphael Escobar, que atuam em parceria, Virgínia Medeiros e o escritor Julian Fuks.

Estudantes de arquitetura da Escola da Cidade desenvolvem área de atividades coletivas no térreo do Cambridge.
Estudantes de arquitetura da Escola da Cidade desenvolvem área de atividades coletivas no térreo do Cambridge.

Durante as filmagens de Era o Hotel Cambridge, outra importante iniciativa foi desenvolvida: a criação do Grist (Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto). Por meio da organização, cidadãos de diversas origens têm acolhimento no hotel e em outras ocupações da FLM (Frente de Luta Por Moradia), entidade que coordena o MSTC. No Cambridge, integrantes do Grist criaram um estúdio de ensaios musicais, coordenado pelo maestro haitiano Louides Charles, líder da banda Satellite Musique. A movimentação no pequeno estúdio é crescente. E não é de hoje. Tanto que, em dezembro de 2015, os músicos reunidos ali organizaram o primeiro Grist Fest, um festival, realizado no Largo da Batata, em Pinheiros, zona oeste da cidade, com a participação de músicos de países como República Democrática do Congo, Angola, Togo, Arábia Saudita e Haiti.

Essa mistura indiscriminada e solidária de gente de todo lugar despertou o interesse do britânico Alex Flynn. Doutor em Antropologia, ele primeiro se aproximou do Brasil para vivenciar, entre 2007 e 2009, a rotina de integrantes do MST (Movimento Sem Terra) em Santa Catarina. Desde o final de 2014 de volta ao País, Flynn investiga agora, por meio de uma bolsa da Durham University, intersecções entre arte e política em movimentos sociais brasileiros.

O maestro haitiano Louides Charles, responsável pela coordenação do estúdio que recebe músicos refugiados de diversos países
O maestro haitiano Louides Charles, responsável pela coordenação do estúdio que recebe músicos refugiados de diversos países

Eliane Caffé, cineasta
“Existiam ações culturais na ocupação, mas elas eram muito tímidas. Essa força que existe hoje aqui veio à medida que o filme foi se expandindo. Ela ultrapassou o set de filmagem, foi atraindo várias ações e permitiu a criação de outros coletivos, como, por exemplo, o Grist, que foi formado nas oficinas, a partir de um grupo de refugiados que participou das gravações. Depois que o filme foi concluído, continuamos nossa mobilização com os moradores e avançamos em diferentes frentes. Para o movimento, isso foi muito importante porque, com essa experiência, eles se abriram, por exemplo, para ter mais proximidade com os refugiados.”

“Os refugiados encenaram suas próprias histórias, mas também abriram o que chamamos de ‘janelas’, que foram as conversas que fizemos, via Skype, com familiares que estão em locais como a cidade de Gaza, na Palestina – um dos momentos mais fortes do filme –, o México e a República Democrática do Congo. O filme se passa quase todo dentro do Cambridge. Nele, só há dois momentos de externas: quando abrimos ‘janelas’ virtuais pela internet e na cena da reintegração de posse, que foi feita na desocupação real de um edifício na avenida São João, chamado pelos ex-moradores de Espigão, e editada de forma que parecesse ter sido filmada no Cambridge.”

“Na ocupação, sentimos na pele as contradições do pensamento burguês que coloca no campo da reflexão questões que, para os moradores, estão abertas, escancaradas. Há pessoas que demonizam iniciativas sociais como o programa Minha Casa Minha Vida, mas elas têm importância fundamental para essas pessoas, que vivem em negociação contínua com o poder público. Muitos dos refugiados que conheci têm ótima formação em seus países de origem, como o Issam, um palestino que é doutor em Engenharia Genética, ou o congolês Pitshou, líder do Grist que é advogado. Eles chegam aqui com muita base, mas são obrigados a entrar no limbo social dos trabalhadores de baixa renda e ficam totalmente vulneráveis. O sistema capitalista se tornou tão perverso que não conseguimos enxergar isso com transparência. Se você se informa somente pelo que diz a grande mídia, mas decidir incursionar por uma ocupação, perceberá o quanto vivemos uma luta de classes. A vida, para grande parte da população brasileira e mundial, é extremamente difícil.”

O cineasta Beto Brant debate, com moradores da ocupação, seu filme "O invasor", após exibição.
O cineasta Beto Brant debate, com moradores da ocupação, seu filme “O invasor”, após exibição.

Juliana Caffé, curadora
“Os refugiados que vêm a São Paulo não têm apoio do poder público e quem os acolhe, na maioria das vezes, são os movimentos sociais de luta por moradia. A ideia da residência artística surgiu em paralelo com o filme da Eliane. Desde o início, a gente tinha em mente que não sairiam daqui obras de arte, e nem era isso que pretendíamos. Estruturamos a residência artística como um projeto e não como uma instituição.”

“Fazer esse trabalho é algo muito transformador para mim porque descubro outras maneiras de me relacionar com a cidade de São Paulo. As questões políticas colocadas pelos moradores do Cambridge são muito importantes. Eles vivem em luta e vigília constantes. Tudo está em jogo o tempo todo. Para mim, tem sido apaixonante estar aqui, porque me aproximei de uma rede de pessoas que eu jamais conheceria se não fosse esse trabalho. Artística e profissionalmente, tenho aprendido muito neste espaço, que é totalmente experimental e horizontal. O desafio é enorme, mas ao mesmo tempo gratificante, porque as descobertas são mútuas.”

Alex Flynn, antropólogo
“Trabalho com o MST desde 2007 e morei, por dois anos, em uma ocupação do movimento em Santa Catarina. Essa experiência me levou a enxergar outros aspectos do projeto que realizamos no Cambridge, como, por exemplo, a diferença entre as dimensões de participação em um projeto artístico e em movimentos sociais. Aqui, estão em jogo questões como visibilidade e participação, discussões que, num projeto artístico, são horizontais e descentralizadas, o que não é sempre o caso dos movimentos sociais, em que a organização e a lógica estrutural são completamente diferentes e geram outras expectativas nas pessoas. Os movimentos sociais têm uma premissa de massificação e a gente não quer trabalhar no sentido de criar obrigações para os moradores.”

“Houve aqui um encontro com o filósofo Peter Pal Palbert e alguns dos comentários e depoimentos mais contundentes daquela noite foram feitos pelos moradores e pelos integrantes dos movimentos sociais. É o que acontece quando um teórico vai a um espaço onde a realidade é infinitamente mais complexa do que suas teorias. Em um papel crítico e político da arte. O Peter, na fala excelente que deu, tinha de lidar com opiniões que jamais ouviria nos lugares que costuma frequentar. Pessoas dizendo coisas como: ‘Você tem que ser mais vinculado a políticas partidárias’; ‘Não, você tem mesmo é que ir além e se articular no campo da anarquia’; ‘Você é muito teórico, clareie sua prática ativista’. Esse espaço contestador gera o sentido de que tudo está em questão. É por isso que o artista se arrisca muito mais por aqui. E detalhe: ele trabalha sem dinheiro. São situações como essa que tornam este espaço único para repensar o modo de viver dentro das cidades.”

Yudi Rapahel, Alex Flynn e Juliana Caffé, responsáveis por projeto de residência artística do Cambridge
Yudi Rafael, Alex Flynn e Juliana Caffé, responsáveis por projeto de residência artística do Cambridge

Yudi Rafael, curador
“Como curador, desenvolvi um trabalho que, em parte, discutia a criação de alguns campos de concentração nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra. Teoricamente, eram espaços para japoneses, mas, na prática, dois terços das pessoas que estavam lá eram norte-americanos de ascendência japonesa. Nesse contexto, há uma discussão sobre questões históricas que foram obliteradas por diversas razões e que também estão presentes nos discursos sobre, por exemplo, as imigrações de asiáticos e italianos no Brasil e como elas foram pensadas, em termos raciais, como um projeto de ‘embranquecimento’ da sociedade brasileira. O passado demonstra como foram criadas situações do presente. No Brasil, até hoje certas imigrações são bem-vindas e outras não. Historicamente, sempre foi assim.”

“Este é um lugar privilegiado porque estamos dentro de um espaço que é gerido por movimentos sociais que se organizam de forma comunitária. Não é um condomínio onde um vizinho não conhece o outro, onde as pessoas não se envolvem na gestão do lugar onde convivem. É muito legal ver a convergência que ocorre na ocupação, um espaço onde a possibilidade de diálogo aproxima grupos com histórias diferentes. A própria residência artística tem uma história de encontros de trajetórias. Acho que isso demanda a vontade e o esforço de refletir e problematizar questões, e não fazer coro com a hegemonia. Algo trabalhoso, mas que é muito gratificante. Não existe mágica para a coexistência e ela nunca está posta. É uma questão constante, de envolvimento contínuo.”

A diretora Eliane Caffé e equipe filmam conversa, via Skype, entre uma moradora palestina e seus familiares, que residem em Gaza
A diretora Eliane Caffé e equipe filmam conversa, via Skype, entre uma moradora palestina e seus familiares, que residem em Gaza

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