O poeta dissidente

Cena do funeral de Kim Jong-il, que apreciava poesia. Foto: Reprodução / Kyodo
Cena do funeral de Kim Jong-il, que apreciava poesia. Foto: Reprodução / Kyodo

Que a Coreia do Norte é o país mais fechado do planeta todo mundo sabe. Poucos, no entanto, conhecem a importância da literatura no regime instaurado em 1948 por Kim Il-sung, o Líder Supremo. Ele, que apreciava romances, comandou o país até a sua morte, em julho de 1994. Na sequência, assumiu o poder seu filho Kim Jong-il, o Querido Líder, que também governou até morrer, em dezembro de 2011, e tinha mais apreço pela poesia. Não importa a preferência, uma e outra narrativa destinavam-se a enaltecer o regime e o líder da ocasião. É nesse universo que um jovem poeta entra para o círculo de preferidos de Kim Jong-il e acaba recrutado para trabalhar no mais secreto setor de contrainformação norte-coreano. Não deu certo. Cinco anos depois, ele empreendeu uma fuga repleta de incidentes pela fronteira norte, com a China, até chegar à Coreia do Sul, como relata na autobiografia Querido Líder – Os Segredos Explosivos da Ditadura Norte-Coreana Revelados por um Alto Funcionário do Regime, publicada no Brasil pela editora Três Estrelas.

Jang Jin-sung, como o autor é conhecido, era, no começo dos anos 1990, um estudante de música com aspirações literárias, mas poucas possibilidades de seguir essa vocação. No país da dinastia Kim, ninguém pode produzir uma obra por conta própria. Corre o risco de ser julgado por traição. “Não é papel do escritor articular novas ideias ou fazer experiências estéticas a seu bel-prazer”, explica Jin-sung em Querido Líder. A sorte mudou depois que ele venceu um concurso literário. Como recompensa, Jin-sung ganhou um posto de curador de poesia no único canal de televisão do país.

A outra guinada na trajetória de Jin-sung aconteceu quando Kim Jong-il, o Querido Líder, reclamou da queda de qualidade no material produzido pela seção de literatura do Departamento da Frente Única, que controla o serviço de contraespionagem do país. Pressionado a resolver o problema, o chefe do departamento se lembrou do jovem poeta. Pouco depois, Jin-sung estava lotado no Setor 5 (Literatura), da Divisão 19 (Poesia), do escritório 101 do departamento. Daí em diante, mesmo vivendo em Pyongyang, a capital norte-coreana, Jin-sung imergia na cultura sul-coreana, para criar loas ao regime, como se fossem produzidas por um escritor da outra metade da Coreia.

Cãozinho maltês
As peças escritas no departamento de Jin-sung não se limitavam a plagiar estilos literários e inventar autorias. Elas eram distribuídas pela Coreia do Norte com selo falso de editoras sul-coreanas e imitavam até a gramatura do papel. Para conseguir esse feito, Jin-sung e outros sete escritores chegavam às oito horas da manhã no departamento e passavam todo o expediente analisando publicações sul-coreanas verdadeiras, proibidas para o resto da população. Nenhum material podia ser retirado da repartição. “Do lado de fora, éramos norte-coreanos residentes em Pyongyang. Lá dentro, éramos cidadãos sul-coreanos, todos nós”, lembra Jin-sung.

O posto incluiu Jin-sung na elite do país, com direito a regalias inimagináveis para a maioria dos norte-coreanos, a começar por bebidas e alimentos importados. Os privilégios aumentaram ainda mais depois da noite em que Jin-sung foi acordado por um telefonema. “Trata-se de uma convocação extraordinária. Compareça ao trabalho à uma da manhã. Venha de terno. Não avise ninguém”, alertou um graduado burocrata. O poeta, que morava com os pais, só não se preocupou em demasia com a ordem porque mandaram que vestisse roupa formal. Ele sabia que convocações extraordinárias no meio da noite podiam culminar em execução sumária ou desaparecimento em campos de prisioneiros. Para isso não era necessário vestir terno.

Dono de uma escrita fluida e cativante, Jin-sung descreve nos mínimos detalhes o périplo organizado pela burocracia governamental até que ele alcançasse uma ilha de uso exclusivo da família Kim. Em um cenário cinematográfico, todo branco, o poeta aguardou junto com um pequeno grupo pela honra de ser recebido pelo Querido Líder. Quando Kim Jong-il entrou no salão, foi como se todos tivessem ficado petrificados. Passado o primeiro impacto, o poeta ficou um pouco desapontado com a figura do governante, menos grandioso do que imaginara. Como se não bastasse, Kim Jong-il só parecia prestar atenção no cãozinho maltês que o acompanhava.

No universo norte-coreano, o momento era dos mais solenes. Na ocasião, com apenas 28 anos, Jin-sung se tornava um Admitido, um integrante do minúsculo círculo de homens “cuja presença Kim Jong-il solicitou pessoalmente e com os quais passou mais de vinte minutos a portas fechadas”. Sua participação no grupo revelava o quanto o Querido Líder era sensível à poesia, embora a escassez de papel decorrente do colapso da economia pudesse ter ajudado a relegar para segundo plano os romances, em geral mais volumosos. Distraído com os próprios pensamentos, o poeta quase entrou em pânico quando Kim Jong-il perguntou se era mesmo ele quem havia escrito um determinado poema. “Alguém escreveu por você, não foi? Nem pense em mentir para mim. Mando matá-lo”, disparou Kim Jong-il antes de cair na gargalhada. “É um elogio, seu babaca.”

O poeta sabia que a possibilidade de execução estava sempre no horizonte. E que ele vivia cercado de regalias. Essa consciência se aprofundou quando, co­mo prêmio pelo desempenho como artista do regime, teve direito a viajar à cidade onde nascera, Sariwon, a apenas 63 quilômetros da capital Pyongyang. Desde que saíra, ainda na adolescência, nunca mais voltara, até porque mesmo os pequenos deslocamentos internos precisam ser autorizados. Ao desembarcar em Sariwon, Jin-sung logo percebeu os efeitos da Árdua Marcha, o estado de emergência alimentar que assolou o país entre 1995 e 1998. Na estação ferroviária, ele não reconheceu o amigo de infância que tinha ido buscá-lo.

Mais tarde, quase chorou ao saber que, para preparar as tigelas de arroz do jantar, a mãe de seu amigo montara uma estratégia de guerra. Na expectativa de receber bem o antigo vizinho, ela separou dez grãos de arroz de cada refeição, durante três meses. E o pior ainda estava por vir: no mercado da cidade, Jin-sung assistiu ao fuzilamento de um agricultor que roubara uma saca de arroz. Abalado, o poeta antecipou a volta para a capital, onde prevalecia um clima mais ameno. Mas, depois da experiência traumática, começou a escrever um livro secreto, com suas reais impressões do país.

Com o tempo, Jin-sung passou também a trocar informações sobre o regime com um amigo dos tempos da escola de música. Chegava a emprestar livros proibidos a ele. Quando esse amigo esqueceu no metrô um desses livros, editado na Coreia do Sul e carimbado com a marca do departamento de Jin-sung, ambos decidiram fugir do país. Continuar em Pyongyang e ser acusado de traição representaria pena de morte até mesmo para Jin-sung. A partir daí, as histórias da fuga de 35 dias narradas em Querido Líder são tão fantásticas que parecem inverossímeis. Não há como conferir. Afinal, por questões de segurança, não se sabe nem a verdadeira identidade do autor. Jin-sung é um nome literário, adotado em Seul, onde ele encontrou abrigo e começou a trabalhar como analista em um instituto vinculado ao serviço de inteligência.

Desde 1948, quando a Península da Coreia foi dividida em dois países com ideologias opostas, dissidentes com informação privilegiada são recebidos de braços abertos em ambos os lados. Só em 2008, quatro anos depois de chegar a Seul, Jin-sung voltou à poesia. Com base nos manuscritos que preservou durante a fuga, publicou o livro Vendo Minha Filha por 100 Wons, um sucesso editorial. Mais tarde, em 2011, ele criou o site News Focus International, dirigido a refugiados norte-coreanos. No começo de novembro, o site de Jin-sung não publicou nenhuma linha sobre o escândalo envolvendo a presidente da Coreia do Sul com um grupo informal de assessores conhecido como as “oito fadas”, acusado de extorquir os principais conglomerados econômicos do país. Sinal de que ele, de fato, mudou de lado. O inimigo agora é a Coreia do Norte, que classificou a administração da presidente da Coreia do Sul como “a mais deformada, anormal e estúpida na sociedade contemporânea”. Em tempo: desde a morte do Querido Líder, quem está no comando da Coreia do Norte é um de seus filhos, Kim Jong-un, o Grande Sucessor.


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