*Por Daniela Gillone
Cinema Explícito expõe um panorama das representações do sexo no cinema, desde as pioneiras cenas de nudez e beijos, passando pelo erotismo do cinema mainstream e pelo pornográfico, os stag films, ou seja, do período silencioso ao cinema contemporâneo que codifica o sexo explícito. Neste traçado, incluem-se as experiências das vanguardas artísticas, do cinema experimental, do underground, das pornochanchadas, do cinema marginal brasileiro, do cinema queer, das pornografias alternativas e da estilização do sexo no cinema de autor que politizou o desejo.
Diante de diferentes propostas narrativas, muitas vistas como transgressoras, libertárias ou confinadas em discursos que normatizam o sexo, Rodrigo Gerace propõe uma revisão crítica da recepção dessas cinematografias para contextualizar a noção do obsceno e a diferença de valor simbólico entre o erótico e o pornográfico. O autor se ancora em Michael
Foucault e em outros filósofos e teóricos do cinema que avaliam os sentidos culturais e ideológicos envolvidos na função política do sexo nos filmes. A condição da perspectiva histórica, assim como os aspectos formais que definem o discurso político de uma narrativa, orienta questionamentos sobre as relações entre sexo explícito e representação realista.
Como filmar o sexo senão pelas imagens confinadas à sua representação? O que haveria de real e o que escaparia de verdade na experiência do explícito ao ser capturado por uma câmera? O autor enfrenta essas questões que permeiam a imagem do sexo. As teorias realistas de André Bazin e suas contradições com a possibilidade de representação total são referências para a revisão de Gerace no que tange os liames entre a realidade da representação e a experiência do sexo. Por mais que a pornografia deseje o mito do realismo, o autor salienta que, mesmo pelo fato de o performer sexual se envolver no ato explícito, a imagem pornográfica em sua totalidade é tendenciosa ao universo então (dis)simulado. No sentido do realismo, a imagem será mais justa quanto menos desejar sua totalidade.
Na insistente distinção da obscenidade, Gerace também encontra no on scene, o que está fora de campo em um plano fotográfico, o que provoca o espectador a ver o obsceno a partir de seus próprios conhecimentos. No livro, a obscenidade é vista como um construto que se define por maneiras de ver condicionadas aos efeitos morais, estéticos e ideológicos que marcam uma época. Assim, a investigação do obsceno e do pornográfico se fundamenta na construção histórica, social e cultural em torno do sexo e suas práticas, de modo que a imagem do obsceno em um filme condiz mais com a associação que se faz do termo no momento histórico do que sua própria visualização nas cenas. Um filme como o do Thomas Edison que foi considerado como obsceno no cinema silencioso, hoje pode ser visto como um filme fantasmagórico.
Enquanto as imagens de nudez e erotismo proliferaram no cinema silencioso, cresceu também a tendência a reprová-las e definirem muitas delas como obscenas. Por um longo período, através de regimes de censura, essas imagens confinadas à produção clandestina, por sua simples existência, definiram discursos que reivindicam a ordem da pureza e dos pudores sexuais tipicamente burgueses. No caso do cinema norte-americano, o Código Hays estabelecido em 1930, por quase quatro décadas determinou a autocensura do cinema. Produtores, atores, diretores e roteiristas tinham que obedecer às normativas do Código a fim de terem seus filmes aprovados para exibição nas salas de cinema. O beijo era permitido no Código, e é no contexto de ironia à censura que surge o filme Kiss (1963), de Andy Warhol, com cenas de casais que se beijam por mais de 50 minutos.
Em 1968, o Código foi extinto e a industrialização da pornografia avançaria na década de 1970. Nessa nova onda da pornografia, o filme Garganta Profunda (1972) radicalizou a estrutura do pornô convencional: sua trama non sense, com imagens de uma mulher cujo clitóris se localiza na garganta, causou ruídos entre feministas por representar a figura feminina que depende dos homens para ter o orgasmo. Por outro lado, é uma das primeiras produções com abordagem pornô em que a mulher está no centro da trama. O filme radicaliza por imbricar a ficção à pornografia.
Nessa análise de filmes que intercambiam temas tabus à política do erotismo, o leitor-espectador acompanha os capítulos dedicados aos cinemas de Catherine Breillat, Lars Von Trier, Bruce LaBruce, e às produções autorais recentes como Azul É a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, estrelado por Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, e Praia do Futuro (2015), de Karin Ainouz. Na busca por desvelar os sentidos morais imbricados nas narrativas, Gerace percebe que Ninfomaníaca, de Lars Von Trier, se destaca como um exemplo da cinematografia recente que coloca o sexo na condição do segredo e da descrição, o que seria indício de que trabalha o tema como um tabu. No entanto, considera que o diretor trabalha o tabu intencionalmente para transgredi-lo: a atriz chega a procurar tratamento e se empodera ao assumir que ser ninfomaníaca é a sua realização.
Essas e outras análises de filmes só reforçam a importância de publicações que reflitam sobre a representação do sexo no cinema, que infelizmente é muito pouco valorizada. Nesse sentido, o grande mérito do livro, originado de uma tese de doutorado, não se limita à construção de uma reflexão teórica que pense e dê visibilidade a essa cinematografia. Expande-se em um convite para o leitor se despir de preconceitos e entregar-se ao cinema que se define explícito.
Serviço – Cinema Explícito: Representações Cinematográficas do Sexo
Cinesesc – Rua Augusta, 2075, Cerqueira César, São Paulo/SP, às 20h; (11) 3087-0500.
Haverá exibição de dois filmes: Por Dentro da Garganta Profunda, às 18h30, e W.R. Mistérios do Organismo, às 21h; grátis; ingressos devem ser retirados com uma hora de antecedência.
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