O sabiá ainda canta

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Rubem Braga em frente à avião Cachoeiro de Itapemirim. Foto: Divulgação


Num texto sobre o amigo e colega, com quem morou por um tempo, em Copacabana, Paulo Mendes Campos cita o próprio Rubem Braga, que disse, certa vez: “Como Quincas Cigano (seu tio), eu também só tenho caçado brisas e tristezas. Mas tenho outros pesos na massa do meu sangue”.

Essa vocação cigana ganha agora novo alento com a seleção de 313 escritos do Sabiá da crônica (apelido que lhe deram por causa do canto rico do sabiá) que nunca ganharam a honra de habitar um livro. Reunidos numa bela caixa com três volumes – um sobre música, outro sobre política e o terceiro sobre arte –, mostram que Braga (1913-1990) escrevia mesmo pelos cotovelos, com a facilidade de quem liberta passarinhos.

Ao longo de seis décadas de jornalismo, ele teria produzido cerca de 15 mil textos, o que é, possivelmente, algum tipo de recorde, senão pela quantidade, pela relação quantidade/qualidade. Publicou 12 coletâneas, organizadas por ele mesmo (Otto Lara Resende, outro amigo: “Veja quantos livros ele publicou com esse ar songamonga de quem está se lixando para as galas acadêmicas”). Todo o resto da imensa lavra do capixaba Braga, nascido em Cachoeiro de Itapemirim, foi doado pela família à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio. São artigos, perfis e crônicas feitos para muitos dos principais veículos da imprensa brasileira no século XX: Correio da Manhã, Folha da Tarde, Diário de Notícias, Manchete, Visão, Última Hora, O Globo, Jornal do Brasil, Revista Nacional, O Estado de S.Paulo

Foi nesse arquivo/tesouro que os responsáveis por cada volume fizeram grande parte de suas pesquisas. Bernardo Buarque de Hollanda lá encontrou pérolas sobre a política, ou melhor, “pedras nos sapatos dos governantes”. Carlos Didier garimpou outras joias, mas sobre música, em especial o samba, que Braga definiu à perfeição: “Música viva, onde a melancolia não se faz pesada e a desgraça é uma coisa à qual não se deve ligar excessiva importância”; e André Seffrin descobriu as pinceladas em prosa que o Sabiá dedicava às artes, mas sem vocação para crítico: “Sou mesmo um apreciador distraído, sem responsabilidade, que para apenas para ver melhor aquilo de que gosta mais, sem querer estudar nem julgar, apenas buscando seu prazer.”

Sua despretensão e modéstia, aliás, eram já mitológicas (só perdiam, talvez, para seu engajamento na esquerda não stalinista). E não importava que tivesse entrevistado Picasso, coberto magnificamente a Revolução de 1932 e a Segunda Guerra, nem mesmo que alguém como Manuel Bandeira se dissesse seu maior admirador (o grande poeta falava na “inefável poesia que é só do Braga, sempre bom e, quando não tem assunto, então, é ótimo). O que ele gostava mesmo era, de fato, “não ter assunto”, deitar na rede, ouvir o canto das aves, o murmúrio do mar e falar da”raridade de um cotovelo bonito”, entre outras apreciações do gênero feminino. E, sempre que pudesse, se embrenhar no mato para caçar, pescar e dormir, como também lembra Paulo Mendes Campos.

Um bom exemplo desse jeito desapegado, de uma humildade desinteressada, está no único livro que traduziu, Terra dos Homens, do aviador Antoine de Saint-Exupéry. Em nota, ele nomeia um leitor que lhe enviara sugestões de melhorias na tradução e complementa: “Acolhi quase todos os reparos de sua crítica autorizada, e muito lhe agradeço as lições que me deu.” Só mesmo um mestre da palavra e da vida para tal gesto.


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