Os tenentes, o cabaré e as ditaduras

A fotografia histórica na avenida Atlântica e o Forte de Copacabana, de onde os rebelados disparam tiros de canhão. Foto: Zenóbio Rodrigo Couto/Reprodução
A fotografia histórica na avenida Atlântica e o Forte de Copacabana, de onde os rebelados disparam tiros de canhão. Foto: Zenóbio Rodrigo Couto/Reprodução

Antônio de Siqueira Campos, um dos mais emblemáticos tenentes da Revolta do Forte de Copacabana, tinha se afastado para conversar com um grupo que tentava dissuadi-lo do confronto desigual quando o fotógrafo Zenóbio Rodrigo Couto, da revista O Malho, disparou sua câmera Contessa-Nettel de fole. Naquela tarde de quinta-feira, 6 de julho de 1922, Couto fez um registro histórico, mas Siqueira Campos não apareceu na fotografia. Dispostos a enfrentar mais de mil homens das forças legalistas, quatro militares rebelados apareceram na primeira fila da fotografia, acompanhados por um civil. Era o engenheiro gaúcho Octavio Correia, que morava em Paris e estava em férias no Rio, onde aderiu ao levante dos tenentes contra a permanência das oligarquias no poder. Minutos depois da fotografia, começou o embate e Correia foi um dos primeiros a tombar, como relata o jornalista Pedro Doria no livro Tenentes – A Guerra Civil Brasileira.

Com linguagem fluida e ritmo de thriller, Doria apresenta em detalhes os principais momentos do tenentismo, a começar pelo levante que culminou em tiroteio e morte na avenida Atlântica em 1922. Dois anos depois, o movimento ressurgiu em São Paulo. Para neutralizá-lo, o governo federal bombardeou a cidade. Provocou grandes estragos em bairros operários, como a Mooca e o Brás. Com a derrota, um grupo de revoltosos partiu da capital paulista para ajudar a formar a Coluna Prestes, que viria a percorrer 25 mil quilômetros do território brasileiro entre 1925 e 1927. Jovens e românticos, os tenentes queriam acabar com a corrupção eleitoral e com o domínio da oligarquia cafeeira sobre o País, expresso na chamada “política do café com leite”, que alternava políticos paulistas e mineiros na Presidência.

Embora dispostos a morrer pela causa, eles não tinham um programa a ser implantado caso derrubassem a oligarquia. Por outro lado, tinham tanta pressa em estabelecer justiça social que acabaram atropelando princípios democráticos e servindo de inspiração para ditaduras. “Não haveria 1930 sem o tenentismo. Não haveria 1964 sem o tenentismo”, escreve Doria. “O contexto do Brasil mudou inúmeras vezes desde 1922, mas a ideia de que seria legítimo apear governantes do poder se instalou no Exército Nacional.” Os tenentes dos anos 1920, defende Doria, refletiam valores que haviam influenciado a geração militar anterior à deles, de que os interesses da nação e os das Forças Armadas se confundem.

 Para neutralizar tenentes rebeldes, em 1924 o governo federal bombardeou a capital paulista. Fábricas e casas dos bairros da Mooca e do Brás ficaram em ruínas

Para neutralizar tenentes rebeldes, em 1924 o governo federal bombardeou a capital paulista. Fábricas e casas dos bairros da Mooca e do Brás ficaram em ruínas

A ideia de que o Exército é a Nação vinha de Mustafa Kemal Atatürk, o militar que fundou a República da Turquia. Não por acaso, os militares brasileiros influenciados pelos conceitos de Atatürk costumavam ser chamados de “jovens turcos”. O mais graduado deles era o marechal Hermes da Fonseca, ex-presidente do Brasil, que, depois de deixar o Palácio do Catete, passara uma temporada de quatro anos na Suíça. Quando voltou, em novembro de 1920, era esperado não apenas na praça em frente ao porto onde desembarcou, como descreve Doria: “A multidão não se limitava à praça Mauá. Quando saiu o cortejo em direção ao Clube Militar, carruagem à frente e uns trinta automóveis atrás, o percurso atravessando a avenida Rio Branco parava de esquina em esquina, onde havia alguma banda tocando e muita gente, sorrisos largos ao rosto, gritos de vivas. O Rio de Janeiro parou.”

Passados menos de dois anos, a prisão do festejado marechal, que criticara a política conduzida pelo presidente Epitácio Pessoa, fez eclodir o Levante do Forte. No livro Tenentes, os episódios que impulsionaram a rebelião e a conduziram ao fracasso são narrados com detalhes impagáveis. Um deles diz respeito às negociações entre os rebelados do Forte de Copacabana e o ministro da Guerra, o civil João Pandiá Calógeras. Como o governo federal havia cortado a luz, a água e o telefone da unidade militar, a comunicação entre rebelados e ministro se dava pelo telefone de um cabaré. Situado nas imediações, o Mère Louise, com portinhola ao estilo dos bares do Velho Oeste americano e quartos para alugar no andar superior, era uma espécie de “antessala do Forte”.

Assim como joga holofotes sobre o cabaré, Doria dá nome e sobrenome a personagens que jamais aparecem nos livros de História. É o caso do guarda-noturno João Caprava, do Jockey Club de São Paulo, que havia levado para o hipódromo sua família e a de um amigo. O plano era protegê-los das bombas que caíam sobre o bairro da Mooca, onde uma fábrica de tecelagem de 50 mil metros quadrados ardeu em chamas por três dias. No abrigo improvisado debaixo das arquibancadas do Jóquei, a nora de João tinha dado à luz havia poucos dias quando chegaram tropas enviadas pelo governo federal: “Os soldados decidiram num estalo que o homem era espião e quiseram executá-lo. Dona Carmela, sua mulher, 57 anos, não conteve o susto seguido de pranto. Apavorada. Implorando. Mas foi abatido João. Péricles, seu filho que virara pai ali, logo ali, fez um gesto de desespero. Também abatido.”

Em São Paulo, as forças legalistas haviam adotado a “estratégia de bombardeio terrificante” para desalojar os rebeldes tenentistas que ocuparam a cidade. O confronto, que começou em 5 de julho de 1924 e terminou 24 dias depois, deixou a capital paulista arrasada. Foram, ao final, 503 mortos, cerca de 4,9 mil feridos e 1,8 mil imóveis destruídos. Dos 700 mil moradores, mais de 200 mil deixaram a cidade, contando apenas os que saíram pelas ferrovias. Voltaram depois de sufocada a rebelião, quando uma fileira de rebeldes derrotados escapou rumo ao Sul, onde mais tarde começaria a mítica Coluna Prestes. Doria é econômico em relação a esta etapa do movimento tenentista, provavelmente pelo fato de a Coluna Prestes ser tema de dezenas de obras.

Em contrapartida, ao descrever o período, o jornalista conta em detalhes o destino de Siqueira Campos, o emblemático tenente que não apareceu na fotografia tirada na avenida Atlântica em 1922. Muito próximo a Luiz Carlos Prestes, Siqueira Campos voltava de um encontro com o futuro líder comunista, em Buenos Aires, quando o hidroavião monomotor em que viajava caiu de madrugada no Oceano Atlântico, perto da costa uruguaia. Estava acompanhado por João Alberto Lins de Barros, outro tenente rebelde, que carregava um dinheiro enviado por Prestes para o movimento. Como Siqueira Campos era exímio nadador e tinha mais chances de sobreviver, João Alberto passou o dinheiro a ele antes de se agarrar ao banco de couro que funcionaria como flutuador. Na água, dava para ver as luzes de uma cidade litorânea. Siqueira Campos estava a menos de um metro de João Alberto. De repente, uma onda o encobriu. João Alberto conseguiu chegar ao litoral.

O comando da Coluna Prestes em outubro de 1925. Sentado na primeira fileira, da esquerda para a direita, Siqueira Campos é o segundo, ao lado de Prestes. João Alberto é o sexto na mesma fileira
O comando da Coluna Prestes em outubro de 1925. Sentado na primeira fileira, da esquerda para a direita, Siqueira Campos é o segundo, ao lado de Prestes. João Alberto é o sexto na mesma fileira

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