Vida de gado, vida de sonhos

O ator Juliano Cazarré, intérprete de Iremar, protagonista de Boi Neon (Foto: Divulgação)
O ator Juliano Cazarré, intérprete de Iremar, protagonista de Boi Neon (Foto: Divulgação)

Se você pretende ir ao cinema para conferir o porquê do frisson mundial em torno de Boi Neon (sucessor de Ventos de Agosto, longa-metragem de estreia do jovem diretor pernambucano Gabriel Mascaro, 32 anos), prepare-se para ser tragado, no apagar das luzes, por uma experiência audiovisual desconcertante.

Ao narrar a rotina de um grupo de trabalhadores que percorre o sertão nordestino para ralar nos bastidores das vaquejadas, Mascaro ignora o tom de realismo social tão caro a alguns títulos da cinematografia recente para envolver o espectador em uma inusitada teia narrativa – permeada por cenas de um erotismo impregnado de lirismo – em que desconstrói arquétipos de gênero e nos leva a crer na extinção de comportamentos que ainda regem as relações humanas, como a ditadura do machão no universo masculino e o moralismo repressivo que tolhe a sexualidade de homens e mulheres.

Vencedor do Prêmio Especial da mostra Horizontes do Festival de Veneza e celebrado com Menção Honrosa no Festival de Toronto, Boi Neon foi exibido em mais de 30 mostras estrangeiras. Antes da estreia nacional, no dia 14 deste mês, conquistou mais 12 premiações e foi negociado para ser exibido em 15 países. Exibida em primeira mão no Brasil durante o Festival do Rio de 2015, a produção venceu quatro categorias da mostra carioca: Melhor Filme, Melhor Roteiro (Gabriel Mascaro), Melhor Fotografia (Diego Garcia) e Melhor Atriz Coadjuvante (Alyne Santana, que interpreta a menina Cacá).

No curral de transporte de bois de um velho caminhão Mercedes-Benz 1313 conduzido por Galega (Maeve Jinkings, de O Som ao Redor), estão os vaqueiros Iremar (Juliano Cazarré, de Serra Pelada), Júnior (Vinicius Oliveira, de Central do Brasil) e Zé (Carlos Pessoa, ator amador que, na vida real, é, de fato, vaqueiro). Além deles, a trupe é composta por Cacá, filha de Galega. No registro do dia a dia ordinário do protagonista Iremar e seu quarteto de amigos, Mascaro dispensa recursos narrativos usuais, como a tensão crescente que conduz a um ápice dramático nos minutos finais. Em contrapartida, submete o público a uma sucessão de sequências que valem por muitos finais. Característica enaltecida, por exemplo, neste trecho da resenha escrita pelo crítico Peter Debruge, da revista Variety, após a exibição do filme em Veneza: “Qualquer frame de Boi Neon, se congelado, tem uma força própria tão poderosa que lembra uma pintura holandesa”.

Mas as virtudes do longa não residem apenas na estética. Seu poder de fascínio também está no que há de imprevisto em suas personagens. Iremar, por exemplo, se desdobra entre o esterco do curral e agulhas de máquina de costura enquanto sonha deixar a vida dura de vaqueiro para trabalhar nos novos polos de confecção do semiárido nordestino. Desejo que não desperta em Zé, um chucro, suspeições sobre a masculinidade do amigo, da mesma forma que o aspirante a costureiro ignora o ritual diário empenhado por Junior para manter, na base da chapinha, a longa cabeleira alisada. Também não causa estranheza o fato de Galega alternar as sutilezas da dança com a vida difícil atrás do volante do 1313. Mesmo grávida, a representante de cosméticos Geise (Samya De Lavor, de Com os Punhos Cerrados) faz jornada dupla: à noite atua como segurança de uma fábrica de roupas, mas a junção de ofícios, tampouco, parece inverossímil.

Com esse naturalismo ambíguo e o elogio de um mundo possível de ser reinventado, Boi Neon é desses raros filmes que têm o poder de permanecer por dias na memória de quem o vê.

Veja o trailer oficial de Boi Neon



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