Esse livro é uma síntese da trajetória de Henri Cartier-Bresson. Além de selecionar 155 fotos, o próprio artista tratou de agrupá-las em seis módulos, conferindo ao volume uma fisionomia inteiramente nova. A unidade de livros anteriores, Les Danses à Bali (1954), D’une Chine à l’autre (1954), Les Européens (1955), Moscou, vu par Henri Cartier-Bresson (1955), Chine (1964), Vive la France (1970), cede espaço a uma estrutura aberta, cuja arte combinatória permite ao leitor estabelecer vasos comunicantes e associações inéditas. Ao critério cronológico e ao caráter de antologia, ele contrapõe o recurso da montagem, promovendo o encontro fortuito de duas realidades distantes.
O módulo de abertura está sob o signo da rua. Tomando o partido de André Breton – “A rua é o único campo de experiência válido.” -, a maioria das fotos privilegia lugares de passagem, entroncamentos, pessoas em trânsito ou abandonadas no solo comum da experiência urbana, sejam figuras famosas ou anônimas, intelectuais ou prostitutas, animais ou crianças. O segundo parte da cidade para o campo, da velhice à infância, da arte à natureza. O terceiro nos remete a manifestações de ordem política – um campo de deportados na Alemanha, a cremação de Gandhi, um comício em Paris, operários em Moscou.
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Entretanto, é preciso frisar que nenhum dos módulos fornece título, legenda ou qualquer outra indicação que facilite a vida do leitor. E somente um convívio prolongado com as fotos pode revelar as linhas de força que estruturam o livro. A partir do quarto módulo, por exemplo, fica claro que Henri Cartier-Bresson introduz a técnica do contraponto. Nesse brevíssimo módulo, o registro de rituais da vida religiosa – missas, procissões, funerais – é contraposto a imagens prosaicas de casais, mesclando sagrado e profano. O mesmo procedimento está presente no módulo seguinte que, muito embora seja dedicado à arte do retrato – Faulkner, Truman Capote, Bonnard, Giacometti, Ezra Pound, Matisse -, os apresenta intercalados por paisagens que, sob um emaranhado de formas quase abstratas, sugerem um diálogo entre a natureza interior do artista e a realidade física do mundo.
Nesse sentido, vale reproduzir um comentário de Eric Hobsbawm, sobre a última imagem desse quinto módulo, tirada no Japão: “Uma fotografia de Henri Cartier-Bresson sem presença humana, sem nenhum traço de vida além de tufos de plantas, tem alguma coisa de inesperado. Mas o que há de mais vivo que esse redemoinho de água, espuma e luz? Assim como nas nuvens, nela podemos ver formas nascidas de nossa imaginação. Um elefante? Uma baleia? Um dinossauro?
Mas, ao contrário das nuvens, a água não espera a boa vontade de quem observa. É preciso, portanto, a aptidão única de Henri para pegar intuitivamente o instante exato. Aptidão que também lhe permitiu realizar aqui um milagre dialético – exprimir em uma só imagem fixa a complexidade, o infinito do movimento universal, que o filósofo Heráclito foi o primeiro a reconhecer como essência do universo. Seria uma belíssima página de rosto para um ensaio sobre sua filosofia.”
Por fim, no último módulo, irrompe o senso de humor do fotógrafo (reparem na sutileza pela qual uma simples perna humana pode se transformar em um documento da vida social). Humor composto por distintas gradações, que oscilam entre o comentário cáustico sobre a tecnologia e o elogio do ócio, entre a irônica observação da burocracia americana e a joie de vivre francesa. Em suma, o leitor descobrirá, página a página, uma lógica oculta, cifrada, subterrânea.
A publicação de Henri Cartier-Bresson, fotógrafo, abriu caminho, em 1979, para a legitimação definitiva de sua obra. E, como sabemos, a fama costuma cristalizar os artistas em determinados rótulos. Por isso, me parece estimulante afrouxar um pouco a camisa de força do formalismo. Perito em perambular por linguagens fronteiriças – pintura, cinema e fotografia -, Henri Cartier-Bresson – absorveu tanto o aprendizado da pintura cubista com André Lhote, quanto o imaginário surrealista difundido por André Breton. A beleza de suas fotos surge justamente desse equilíbrio entre várias visadas.
Talvez seja importante lembrar de que o mesmo artista, considerado quase um sinônimo de elegância, nascido em uma família burguesa proprietária de uma fábrica de linhas para costura, também realizou Vitória da vida (1937) e Espanha viverá (1938), dois notáveis documentários a favor dos republicanos, na Guerra Civil Espanhola. Além de simpatizante da esquerda, Cartier-Bresson colaborou regularmente em Ce soir e Regards, publicações do Partido Comunista Francês.
Na condição de fotojornalista, realizou mais de quinhentas reportagens e participou do período heroico de revistas como Vu, Life e Harper’s Bazaar. Em 1947, ao lado de Robert Capa, David Seymour e George Rodger, fundou a Magnum, até hoje a principal agência dos fotógrafos independentes. Jamais procurou ser o que chamamos de testemunha da história, mas um apurado senso de observação fez com que esse viajante incansável estivesse sempre atento à experiência do grande mundo.
No plano intelectual, cultivou com parcimônia o ensaio, mas O instante decisivo (1952) sem dúvida, é uma reflexão incontornável sobre a fotografia. Discreto, fino, clássico, ao modo de artistas como Morandi e Giacometti, existe um Cartier-Bresson que sabe se retirar do mundo, desaparecer, dar primazia aos objetos. Só fala de si mediado pelo outro. Um belo exemplo é Minha cama.
Esse livro que a Cosac Naify e o Sesc colocam à disposição do leitor brasileiro é uma pequena amostra do trabalho de Henri Cartier-Bresson, sempre em preto e branco, sem cortes, flash ou retoques no processo de revelação. Vale frisar que um conjunto significativo permanece inédito, milhares de fotos não passaram pelo crivo rigoroso do fotógrafo. É difícil em um texto tão breve dar a medida exata da importância de Henri Cartier-Bresson. Ele transcende o universo da fotografia.
Quando penso em aproximá-lo de uma linhagem de artistas, um nome que me vem à memória é o de Montaigne.
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