Abraçando o incerto

"Naturalizar al Hombre, Humanizar a la Natureza, o Energía Vegetal", do artista argentino Victor Grippo (1936-2002), obra que estará na Bienal. Foto: Oliver Santana
“Naturalizar al Hombre, Humanizar a la Natureza, o Energía Vegetal”, do artista argentino Victor Grippo (1936-2002), obra que estará na Bienal. Foto: Oliver Santana/ Fundação Bienal

“A incerteza é a condição em que todos nós vivemos, não só na época atual, mas em todas as épocas.” Assim o alemão Jochen Volz, curador da 32ª Bienal Internacional de São Paulo, inicia a conversa com a ARTE!Brasileiros no pavilhão do Ibirapuera. Partindo da constatação de que a imprevisibilidade e a indefinição são “o terreno da vida” em todos os tempos históricos, Volz ressalta que no mundo contemporâneo, notadamente, vários dos conceitos que o homem tomava como fixos e certos não se sustentam mais. “Muito do que a gente aceitava não é mais aceitável, seja na relação do homem com o planeta, seja com o clima, com os desafios sociais, com sistemas econômicos, de propriedade, de terra, etc.” Em um mundo extremamente conectado, diz o curador, no qual cresce a consciência de nossa vulnerabilidade, o ser humano vive, de algum modo, mais cheio de incertezas do que vivia no passado. Seja para o bem ou para o mal.

Foi inspirado nesse pressuposto que Volz e a equipe curatorial, formada por mais quatro integrantes de diferentes países, traçaram as principais diretrizes da 32ª Bienal, intitulada Incerteza Viva, que acontece entre 10 de setembro e 11 de dezembro deste ano. Do grande tema inicial decorrem vários outros, que vão da perda de diversidade biológica e cultural às mudanças climáticas, da distribuição de recursos naturais à instabilidade político-econômica, das condições de trabalho aos modelos de educação alternativos, do pensamento cosmológico à mitologia. Assuntos das mais variadas áreas vistos, aqui, sob o ponto de vista da arte: “Então é um momento em que muitas coisas precisam ser revistas, e muitas áreas do conhecimento estão chamando para uma nova consciência. A filosofia, a ciência… E nós queremos que a arte faça isso também, que participe nesse processo, sabendo que ela tem algo a contribuir para essa discussão global,” afirma o curador.

O forte tom político presente na linha curatorial é entendido pela equipe, mais do que como uma opção, como uma necessidade. “Os grandes temas de uma Bienal não podem ser aqueles tratados em uma galeria de arte, por exemplo. Eles pertencem à esfera pública, ao mundo em geral, e trazem questões sobre como a vida é governada e articulada hoje em dia. Nesse sentido, trata-se sim de uma Bienal política, no sentido mais amplo da palavra”, afirma o dinamarquês Lars Bang Larsen, cocurador do evento. Desse fato não decorre, no entanto, qualquer desejo de tratar os temas de modo explicativo, didático ou panfletário. As grandes questões surgem como a base a partir da qual os artistas – serão cerca de 90, grande parte com trabalhos criados para a edição – podem desenvolver suas pesquisas e processos criativos.

“Mais do que encomendar ou comissionar trabalhos a partir desse tema, a gente está buscando artistas que, na sua prática, na sua natureza e nos assuntos que têm tratado, já são habitantes dessa incerteza”, explica a brasileira Júlia Rebouças, cocuradora da edição. “Acho que a arte tem esse papel de apontar, de chamar a atenção, de provocar. Não significa, no entanto, que ela precise ilustrar assuntos que estão sendo discutidos na política, no ativismo, na rua. O que queremos é que a Bienal possa refletir de alguma forma sobre ecologia, meio ambiente e outros assuntos, mas não ilustrando, e sim com a poética da arte, que possibilita pensar caminhos que ainda não foram pensados”, diz Volz.

A partir da esquerda, os curadores Júlia Rebouças, Jochen Volz, Gabi Ngcobo, Lars Bang Larsen e Sofía Olascoaga. Foto: Sofia Colucci/ Fundação Bienal
A partir da esquerda, os curadores Júlia Rebouças, Jochen Volz, Gabi Ngcobo, Lars Bang Larsen e Sofía Olascoaga. Foto: Sofia Colucci/ Fundação Bienal

Possibilidade no não saber

Trabalhar desse modo, segundo os curadores, significa também entender a incerteza não apenas como crise ou algo que gera medo, mas como possibilidade, algo positivo. “É muito bonito pensar sobre tudo que a gente não sabe”, diz Volz. A ideia, como diz Rebouças, “é um pouco abraçar a incerteza, habitá-la e talvez pensar menos em verdades e no que achamos que tem que ser”. E ela completa: “A incerteza é a possibilidade de continuidade, e pensar assim é um jeito de construir caminhos para o futuro”. Nesse sentido, a arte pode se diferenciar das outras várias áreas do conhecimento que, cada uma a seu modo, também lidam com o imprevisível. “A arte permite que a gente erre, ela se alimenta da falha, do risco, e não necessariamente opera dentro de um sistema pragmático onde tudo precisa ter um resultado imediato. Ela especula com o desconhecido o tempo inteiro, se alimenta dessa ideia de tentar algo que não é o previsível”, afirma Volz.

E é justamente uma perspectiva positiva, mesmo que crítica, que pode ajudar a responder a um quadro global que é negativo em muitos aspectos. Segundo Larsen, se é difícil afirmar que as tragédias e desastres do mundo atual são maiores do que em outros tempos – já que isso não é mensurável –, certamente há um sentimento crescente de desequilíbrio e risco, especialmente quando a própria existência da espécie humana entra em discussão. “O que acho que mudou é a incerteza sobre a vida, sobre nosso dia a dia, as relações econômicas, o uso do tempo, as condições de trabalho e do acesso aos recursos que antes eram considerados básicos para a vida”, afirma a também cocuradora Sofía Olascoaga, do México. “Ar, água, alimento, habitação… Hoje há uma crise no acesso a esses recursos que potencializa as experiências de incerteza.” E para lidar com os desafios dos dias atuais, afirma ela, nenhuma resposta é, sozinha, suficiente.

Como tentativa de propor novos caminhos, a 32ª Bienal traçou também uma linha curatorial um tanto antropológica, uma vez que se propõe a olhar com apuro para outras culturas. “Na nossa formação ocidental, o modo como o conhecimento vem sendo organizado sempre aponta para ideia da história como uma linha reta, a ciência como uma coisa que vai buscar a verdade. Sempre estamos procurando as certezas, a verdade, a solidez, o certo. E a gente achou que seria interessante nesta Bienal buscar tradições, povos, ambientes e disciplinas em que a incerteza vive de forma mais presente. Então é como se a gente estivesse fazendo uma observação para trazer isso para o projeto curatorial e para uma reflexão sobre o nosso tempo,” afirma Rebouças.

De maneira concreta, entram aí os chamados Dias de Estudo, que serão realizados entre março e maio em Cuiabá (Brasil), Santiago (Chile), Acra (Gana) e na Amazônia Peruana, com seminários, visitas de campo a comunidades locais, reservas ecológicas, centros culturais, estúdios de artistas e instituições. A ideia é dar uma fundamentação empírica às linhas de pesquisa propostas pela Bienal, além de estabelecer diálogos com as comunidades de outros lugares fora da capital paulistana. “Foi um desejo de que, embora sejam grandes temas, não sejam apenas abstratos, sempre tenham um vínculo concreto”, explica Volz. Olascoaga segue na mesma linha: “Interessa muito esse lugar de cruzamento entre a arte e os processos da vida. Então a ideia é introduzir a dúvida sobre as maneiras que construímos nossa relação com o mundo e pensar em como surgem outras possibilidades de entendê-las, a partir de outros tipos de processos culturais e sociais – que muitas vezes ficam fora dos paradigmas de conhecimento hegemônico ocidentais”.

Cena do vídeo "Children´s Game #7 Hoop and Stick" (Bamiyan, Afeganistão), 2010, do artista belga Francis Alÿs. Foto: Sofia Colucci/ Fundação Bienal
Cena do vídeo “Children´s Game #7 Hoop and Stick” (Bamiyan, Afeganistão), 2010, do artista belga Francis Alÿs. Foto: Sofia Colucci/ Fundação Bienal

São Paulo e os artistas

Para além de estabelecer contatos com comunidades de outros cantos, a 32ª Bienal de São Paulo se propõe a fortalecer as relações com a própria cidade que habita e, mais especificamente, com o entorno no Parque Ibirapuera. Diferentemente de outras edições, que espalharam obras por diversos espaços da capital, a edição deste ano quer focar no seu próprio pavilhão, mas pensando a exposição em diálogo com o espaço externo. “O parque é um lugar onde vários setores e classes da sociedade se juntam e convivem. E a gente quer trazer essa convivência democrática que existe nele para dentro da mostra. Então é importante entender a exposição como uma continuação do jardim do parque e, do mesmo modo, entender o parque como um desdobramento, uma continuação da exposição”, explica Volz. Para começar a colocar em prática a ideia, desde o ano passado os curadores estabeleceram relações com outras instituições do Ibirapuera – museus, planetário, escola de jardinagem, etc. –, possibilitando futuras colaborações entre elas e os artistas da Bienal.

Sobre a escolha dos artistas, os curadores preferem não citar destaques individuais – “todos eles em conjunto são a Bienal, e cada um acrescenta um conteúdo que nos instiga e nos interessa”, diz Volz –, mas ressaltam que o time já divulgado até o momento (65 dos cerca de 90 nomes) é majoritariamente jovem, com muitos artistas nascidos nos anos 1970 e 1980. Há também um grupo de artistas “históricos”, entre os quais Gilvan Samico (1928-2013) e Öyvind Fahlström (1928-1976), que, apesar de estarem em número menor, receberão grande destaque na mostra. A produção dos trabalhos comissionados se dará simultaneamente ao planejamento do espaço expográfico, na tentativa de colocar as obras em diálogo de um modo orgânico. “Vamos trabalhar a partir dos projetos específicos que os artistas propuserem, sem uma planta preestabelecida. É um desafio, inclusive para os arquitetos, mas é também um momento gostoso, porque os projetos começam a ganhar corpo e, de repente, a gente consegue visualizar a exposição dentro do espaço.” Se desse modo o resultado é ainda algo incerto, isso não assusta os curadores. Afinal, como diz Volz, “a incerteza é a condição em que todos nós vivemos”.

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