Bourgeois III impõe duelo de titãs no MAM do Rio de Janeiro

Há um momento?luminoso na história da cultura europeia que está fixado em uma imagem do Hôpital de la Salpêtrière. Passa-se em Paris, numa terça-feira do final do séc. XIX e, quase como em um filme, podemos imaginar um médico, Charcot, que diante de um anfiteatro cheio de gente, exibe uma crise de histeria de uma das muitas mulheres que ali eram observadas.

Sua intenção era provar cientificamente que a doença histérica toma formas corporais específicas, existindo uma matemática previsível entre doença psíquica e sintoma, à semelhança do que acontece com as doenças do corpo. A partir deste teatro da loucura e da histeria, o jovem Freud, aluno de Charcot, desenvolveu a ideia de uma estrutura instável, mutante e sobredeterminada para o sintoma, abrindo um caminho inverso, que pensa a flutuação entre significado e significante, ao invés de uma correspondência determinista. No seu famoso gabinete, Freud tinha a imagem de La Salpêtrière, lugar onde compreendeu que a ambivalência é constitutiva do ser humano, e que a imagem se organiza através do jogo dialético entre olhar e imaginação.

Louise Bourgeois sabe-o bem. Um dos seus trabalhos mais emblemáticos, Arch of Hysteria (1993), leva-nos direto a esse capítulo da história entre Charcot e Freud. Trata-se de um corpo deliberadamente masculino, revirado, suspenso em tensão, onde a artista, mais do que problematizar o preconceito sexual relacionado com a histeria, produz uma forma eficaz para a ambiguidade que institui uma imagem.
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Isto vem a propósito da exposição O retorno do desejo proibido que chega agora à sua terceira etapa no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ) com um conjunto expressivo de trabalhos de Louise Bourgeois, artista de naturalidade francesa que se radicou nos Estados Unidos aos 43 anos.

Maman (1999), a grande aranha que está montada no Aterro do Flamengo, acaba por se tornar uma experiência ainda mais desconcertante daquela que já podemos possuir, por estarmos no Rio. Debaixo da chuva tropical do inverno, irrompe do chão uma flor de ferro, uma aranha devoradora que nos protege com suas patas angulosas. Ao fundo, as formas redondas do Pão de Açúcar, o morro do Corcovado, a serenidade do Cristo. Tudo nos escapa, os significados e os significantes. Pura beleza.

O MAM fica ao lado, e a exposição de Louise Bourgeois continua lá. Para quem conhece o projeto arquitetônico de Affonso Reidy, do início dos anos 1950, com suas linhas modernistas, seu conjunto de edifícios articulados, de estruturas vazadas e transparentes, o confronto com o universo de Bourgeois pode parecer um duelo de titãs. O rigor do concreto que está na opção modernista de um homem sem passado parece assombrar a “mulher sem qualidades” prisioneira da infância. Mas só em aparência o Museu é um edifício austero, porque a paisagem do Rio-sensual, contraditória, brutal, explodente-desestabiliza a construção dos sentidos. Mais surreal que moderno.

Uma das decisões mais idiossincráticas da curadoria de Philip Larratt-Smith em O retorno do desejo proibido foi optar por detalhes de montagem eficazes, principalmente no agrupamento “ambiental” de certas esculturas do início da carreira da artista, e no caso da primeira sala de exposição em penumbra. Dispôs obras emblemáticas de Bourgeois sem um fio cronológico, apenas uma complexa rede de sentimentos que se reflete na ambiguidade entre o individual e o coletivo, o orgânico e a arquitetura, ou a dupla natureza do espaço doméstico, que ganha maior expressão em Femme Maison e Cells. Aqui, sobre um manto de aparente normalidade se pode esconder algo sinistro, como na fábula que Bourgeois escreveu em 1947, na qual um homem corta a sua mulher em pedaços e faz um guisado para os comensais.

A devoração, a devastação, o canibalismo constitutivos da obra de Bourgeois configuraram uma relação privilegiada da artista na Bienal da Antropofagia (XXIV Bienal de São Paulo, 1998, curadoria de Paulo Herkenhoff ). Em conjunto com Dalí, Maria Martins, e em ressonância com a obra de Eva Hesse, Lygia Clark, Bruce Nauman, Artur Barrio e Adriana Varejão, a presença da “destruidora do pai” no Brasil foi contundente por se tratar de um País produto histórico da colonização, de economia periférica, com uma necessidade estratégica de se tornar emissor de uma linguagem autônoma.

Acompanhando a exposição que chega ao MAM/RJ foram editados os diários de Bourgeois, escritos na maioria entre 1952 e 1967, período mais intenso de sua análise com Dr. H. Lowenfeld. O diário, this little gem, como se referia Freud, serve de sismógrafo que revela e atua sobre a produção artística de Bourgeois, ora abrindo seus sentidos, ora os eclipsando. Escritos em inglês, língua que selecionou para sua análise, os diários dão conta de uma apropriação do mundo e das coisas como jogos de palavras, provérbios ou parábolas, e ganham para o leitor o sentido de uma aventura poético-interpretativa. Sobre eles Louise Bourgeois escreveu: “Gasto muito tempo mas me proporciona a alegria da criação que costumo ter depois de trabalhar, (…) o resultado não é arte inútil, a não ser como catarse”.

Ainda que O retorno do desejo proibido seja uma exposição sobre a “relação profunda de Bourgeois com a psicanálise e a arte”, não fica de fora o potencial de interlocução da obra da artista com as coleções do MAM que, pela sua variedade de referentes, seria capaz de contribuir para questionar a relação de forças entre construtivismo e surrealismo no Brasil.


Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ)
Av. Infante Dom Henrique, 85 – Parque do Flamengo – Rio de Janeiro, RJ
A partir de 13 de novembro
De terça a sexta, das 12 às 18h; sábados, domingos e feriados, das 12 às 19h



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