Crônica da morte anunciada

Ana Mendieta não contempla a dimensão de uma participação física que procura o conhecimento e o contato com o outro, uma atitude que lhe é inteiramente alheia; seu interesse é o lugar ou, melhor do que o lugar, a sua terra, que lhe foi negada quando era pouco mais do que uma menina. Seu corpo fala através da emoção inebriante do reconhecimento e seu trabalho está voltado para a afirmação da sua própria identidade de mulher e de artista cubana. Sua vontade é límpida e forte e não há nada de mais expressivo nesse sentido do que suas próprias palavras, testemunhadas em suas declarações efetuadas em 1981, por ocasião de sua segunda viagem a Cuba.

“Desde 1970 minha manifestação artística consiste em um diálogo com o natural. É o meio que achei de tornar concretas as minhas raízes emocionais com a minha terra e também de conceitualizar minha cultura. Quando meus pais me enviaram para fora de Cuba, em 1961, eu me senti arrancada do seio da minha pátria. Minha arte celebra a interconexão do mundo humano e material no plano da corporeidade, o renascer de anseios antiquíssimos como a promessa de um futuro melhor. A obra efetuada nas Escaleras de Jaruco tem sido de um grande valor para mim, porque foi minha primeira oportunidade de trabalhar em solo cubano… Usando raízes… me foi possível trabalhar cinco corações, que representam as cinco subdivisões das culturas indígenas cubanas”.

O caso cubano, único na história contemporânea, a impudente hipocrisia da assim chamada Operação Peter Pan e a revanche ideológica e pessoal da jovem artista, que se descobre a si mesma junto a sua terra, constituem o quadro histórico no qual se configura sua aventura artística, testemunhada por essas linhas simples e incisivas. Ana Mendieta, que desenvolve sua vida nos Estados Unidos com o coração voltado para Cuba, parte da experimentação de fins da década de 1960 para achar as soluções, que exploram o corpo como uma afirmação de si mesma e de sua integração no ambiente em que vive; seus materiais, terra, madeira, raízes, impressões, são pobres como aqueles das correntes contemporâneas conceptuais e minimalistas. Sua ação se articula no espaço, caracterizada por uma forte originalidade, que a torna, sob muitos aspectos, autônoma das representações de origem norte-americana e mais perto de alguns exemplos de experimentação do Programa Ambiental, proposto e desenvolvido por Oiticica e por Clark – ainda que, neste caso, a proposta artística tenha sido unida a um diversificado empenho social e o artista não se limitasse a ser simplesmente um criador de obras.
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Sua primeira intervenção, que data de 1973, consiste em uma tomada de posição diante da violação e do assassinato de uma companheira de estudos. O corpo ensanguentado e semi-nu da jovem artista cubana é proposto como testemunha viva do que aconteceu; durante dias ela recebe os visitantes, expondo-se como uma sorte de denúncia e como uma maneira de sacudir as consciências. Sua própria pessoa é o campo de ação, frequentemente numa relação problemática com a violência e a morte: no filme realizado durante suas performances de 1974 e 1975, seu corpo flutua imóvel na superfície do mar até encalhar na areia, enquanto seu rosto, como uma máscara, aparece inteiramente coberto de sangue. Se nestes primeiros trabalhos o paralelismo sugerido é como de um cadáver, nas etapas sucessivas sua pessoa tende a desaparecer, ficando unicamente sua efêmera silhueta.

Após seu retorno à Cuba e a sua primeira experiência nas Escaleras de Jaruco, seu trabalho amadurece; sua atividade se divide entre Nova York e Cuba e também fica mais definida pelos reconhecimentos oficiais. Obtém uma bolsa de estudos na Guggenheim e o Prêmio da Academia Americana de Roma, mas, sobretudo, transforma-se num ponto de referência, uma mediadora ideal entre a geração dos jovens artistas cubanos da década de 1980 e a realidade norte-americana. São os anos que presenciam a afirmação, entre outros, de figuras como José Bedia, Rodriguez Brey e Juan Francisco Elso Padilla, jovens que sabem se apropriar, com um critério livre, de tudo quanto possa reforçar seus conceitos de arte. O diálogo estabelecido entre Ana Mendieta e os jovens cubanos emergentes foi tão fértil que foi além de sua própria morte: o trabalho de Tania Bruguera é hoje ao mesmo tempo uma nova visita e uma inquietante reflexão sobre a dinâmica artística de Ana Mendieta.

No momento de seu trágico e prematuro falecimento, a jovem artista se achava numa fase de grande atividade propositiva e, várias vezes, tinha manifestado seu desejo de deixar os Estados Unidos para ir a morar na Itália – onde recentemente tinha desenvolvido uma intensa atividade por ocasião do prêmio recebido – e em Cuba; são estes, entre outros, os motivos pelos quais a suposição de um possível suicídio se apresenta como pouco razoável.

A exposição póstuma, organizada em 1987 no New Museum de Nova York, foi um evento memorável que percorreu as etapas de sua experimentação opressiva e rigorosa.
Para ela, a identificação da arte e da vida são totais: nunca um gesto foi tão sincero, tendo estimulado a artista a obter uma expressão absoluta de sua fisionomia física e psíquica. Este nem mesmo chegou a restringir aquele contato dionisíaco e envolvente, extensivo também aos participantes – algo presente na ação performativa de Lygia Clark. Ao invés disso, seu gesto é vivido na solidão, uma característica que sempre a acompanhou.

A obra de Ana Mendieta transformou-se num mito, ou talvez até numa advertência, porque deixou ao mundo um tipo de lírico testamento apenas assinado pela natureza. Quando sua silhueta ficou impressa pela última vez no pavimento de Nova York, bem embaixo daquela janela do 34° andar, onde morou com seu célebre esposo, Carl Andre, mais do que o imediato da dor, aquilo que mais a golpeou foi a cruel coerência daquela dramática conclusão. Toda sua história de artista se transforma agora num lúcido pressentimento de seu último ato, e seu fim, uma morte anunciada com uma coerência de provocar calafrios.

A história de Ana Mendieta, enquanto mulher e enquanto artista, está a merecer um reconhecimento. Mas se, como em tantos outros casos, já não mais obterá o primeiro, é diferente a realidade da artista. Além de seu aspeto emocional, a sua arte é uma verdadeira arte. Os poucos anos de sua vida artística lhe reservaram um lugar em um dos momentos mais radicais da história da arte contemporânea, desde o binômio experimentação-energia da Arte Povera italiana, até à memória dolorosa de Beuys e às apaixonadas reivindicações de Oiticica, numa conjuntura em que a arte esteve em condições de operar uma das mais radicais rupturas com a tradição.

Texto extraído de artigo da revista Nossa América, ed. 23, 2006


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