Exposição leva a Porto Alegre “universo mágico” do pernambucano Francisco Brennand

Montagem da exposição no Santander Cultural de Porto Alegre. Foto: Marcos Ferraz
Montagem da exposição no Santander Cultural de Porto Alegre. Foto: Marcos Ferraz

Se a produção de qualquer artista pode ser analisada a partir do contexto local onde ela foi concebida – e isso pode se referir a mais de um local, real ou imaginário, assim como a relações harmoniosas ou conflituosas do artista com estes contextos –, em alguns casos este ponto de vista não é só possível, mas necessário. É o caso da obra de Francisco Brennand, desenhista, pintor, escultor e ceramista que, prestes a completar 89 anos, segue vivendo e trabalhando nas mesmas terras onde nasceu e cresceu, no bairro da Várzea, nos arredores de Recife. Mais do que viver ali toda a vida, foi naquelas terras que Brennand criou, a partir de 1971, sua maior obra, ao restaurar e reativar a antiga fábrica de cerâmica de seu pai: uma enorme oficina de trabalho que mais se assemelha a um museu, parque ou “templo”, nas palavras do curador Emanoel Araújo. Um templo monumental, constituído por um conjunto de fornos, painéis, esculturas, cerâmicas e outras obras que se associam à arquitetura para dar forma a um universo inusitado e original.  

Transpor, ao menos em parte, a atmosfera da Oficina Brennand para a sede do Santander Cultural de Porto Alegre foi o grande desafio da curadoria da mostra Francisco Brennand: Senhor da Várzea, da Argila e do Fogo, primeira individual do recifense na capital gaúcha. “É complexo, porque você não pode trazer tudo que está lá”, diz Araújo à ARTE!Brasileiros sobre o espaço que, em 14 mil metros quadrados, reúne cerca de duas mil esculturas espalhadas por jardins, pátios e lagos. “Mas as pessoas precisam pelo menos conhecer, nem que seja numa visão fotográfica, para poder entender um pouco desta produção fora de seu espaço de criação. Todo esse contexto da fábrica, deste lugar mágico que ele criou, tem uma relação muito forte com o trabalho”, segue o curador. “É uma obra complexa, que se incorpora muito mais na arquitetura do que na intimidade de uma casa, porque ela é pesada, é grande, tem certo brutalismo. Ao mesmo tempo, ela tem uma erudição.”

Personagens mitológicos, grandes animais, plantas, frutos e os famosos ovos da fênix, retratados em esculturas, painéis cerâmicos ou pinturas, trazem para a exposição o grande tema que, de diferentes modos, perpassa toda a obra de Brennand: o mistério da origem da vida, incluindo aí reflexões sobre morte, sexualidade, fertilidade e religiosidade. Apesar da arquitetura imponente do prédio histórico em Porto Alegre, as paredes beges do local ajudam a criar uma atmosfera coerente entre o espaço e as obras, em sua maioria de tom amarronzado ou, como define Araújo, cor de terra, “de uma conotação mais telúrica”. Para completar a ambientação, três enormes painéis apresentam, cada um com uma foto, espaços da Oficina Brennand, assim como dois telões transmitem um documentário e uma longa entrevista com o artista. Os vídeos ajudam a apresentar, também, o homem por trás da obra, o personagem já quase “folclórico”, com sua longa barba branca, que habita a oficina na Várzea de Recife. “Ele é uma escultura dele mesmo”, brinca Araújo. “Quando você vê ele lá, é como se fosse uma escultura andando em meio à outras esculturas.”

Se, por um lado, ao transpor o ambiente da Oficina Brennand para a mostra o curador buscou apresentar uma visão mais completa e contextualizada do trabalho do artista, por outro, não se preocupou em fazer uma exposição retrospectiva, que repassasse todos os períodos de sua produção. Pinturas anteriores à restauração da oficina não estão presentes, por exemplo, assim como as obras mais explicitamente ligadas ao erotismo. Esta última faceta não está ausente, no entanto, dada sua relevância na arte de Brennand. As inéditas esculturas Adão e Eva, por exemplo, são grandes destaques da mostra. “Nada nos deixa mais inquietos e sem graça do que a morte, mas o sexo nos deixa mais perplexos do que a morte. Se há alguma coisa que a gente não entende, é a nossa própria sexualidade”, disse certa vez o artista.

Instalação feita por Emanoel Araújo com os ovos esculpidos por Brennand. Foto: Marcos Ferraz
Instalação feita por Emanoel Araújo com os ovos esculpidos por Brennand. Foto: Marcos Ferraz

Após percorrer quase toda a mostra através do salão principal do Santander Cultural, o visitante se depara ao fundo com uma instalação feita por Emanoel Araújo – também artista e escultor – com dezenas de pequenos “ovos” de Brennand, explicitando o interesse do curador por esses objetos tão presentes na obra do recifense. “É essa batalha que ele tem entre ele mesmo, a vida, a morte, o renascimento. O ovo é a renovação da vida, o ressurgimento”, diz Araújo, que conheceu a obra de Brennand em 1961, quando Lina Bo Bardi (1914-1992) organizou mostra do recifense no MAM da Bahia. Araújo, diretor do Museu Afro Brasil, já assinou a curadoria de diversas exposições do artista. Neste sentido, a instalação que funde a obra de ambos explicita este forte vínculo criado entre eles. Se remetem à vida, os ovos e os seres mitológicos dialogam também com a morte, outro tema recorrente na obra de Brennand. “O final é imprescindível em todas as coisas”, disse ele certa vez. “Já deixei estabelecido que quero ser cremado. Eu lidei a vida inteira com o fogo. O fogo redime as coisas. Purifica.” Fogo, este mesmo que, nos fornos da Oficina Brennand, dá dureza, textura e acabamento às obras do senhor da Várzea, da argila e do fogo.   

Serviço – Francisco Brennand – Senhor da Várzea, da Argila e do Fogo 
De 8 de junho a 4 de setembro
Santander Cultural – Rua sete de Setembro, 1028, Porto Alegre
Mais informações no site
51 3287-5500


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