Gestualidade poderosa e errante

Luis Felipe Noé expôs no MuBE – Museu Brasileiro de Escultura, de São Paulo. Agora em nova fase, em Brasília, reafirma-se como uma fúria criativa, se considerarmos seu vigoroso painel de 11 m de comprimento, realizado para sua presença como homenageado na Bienal de Veneza de 2009 representando a Argentina.

Este pintor argentino (1933) é antológico para a arte de seu país no século XX, desde a histórica exposição Otra Figuración (Nova Figuração), inaugurada em 1961 na Galería Peuser, da capital argentina e que marcou o percurso com quatro artistas participantes (Deira, Macció, Noé e De La Vega). Mas no caso de Noé, trata-se de um artista difícil de ser focalizado apenas como pintor. Autor de vários livros, escritor, polemista, teórico de arte, professor, desenhista, tendo se profissionalizado e vivido entre Nova York, Paris e Buenos Aires, Noé – Yuyo para os amigos – é um obsessivo do caos de nosso tempo, conforme ele mesmo declara e Cordova Iturburu já o registra em livro sobre a arte argentina (80 Años de Pintura Argentina).

Suas pinturas amplas parecem visões da terra captadas do alto, em sua gestualidade poderosa, errante como ondas, tal como fotos de um satélite. Nas curvas, de pronto percebemos rostos humanos contraídos, em diminutos desenhos sarcásticos, presença humana liliputiana em meio às gigantescas vagas cromáticas. O desenho nutrindo a pintura, dialogando com o observador/leitor da obra, parece-nos uma constante, a nos falar do medo, presente há décadas em seu trabalho. O medo do homem, o temor pelo nosso tempo.

CRAC
Onde estamos?
Noé, desde os anos 1960-70 pintor desse caos de nosso tempo, se confessa despreparado culturalmente para essa drástica alteração estrutural: “Me sinto como um primitivo frente a um mundo que me excede” (Noé, 1995). Vemos que este artista aborda com ímpeto as questões do nosso tempo no que tange à violência em que vivemos. Assim o vemos no trabalho Estamos en el Siglo XXI. Ao mesmo tempo, em sua especial predileção pela cartografia (antiga, revista ou naquelas criadas por ele agora), destacaríamos sem dúvida Desconstruccion Global, de 2011. Onde reúne em uma sequência de Sul a Norte, de Leste a Oeste, os continentes do mundo, nos impulsionando a uma leitura horizontal da direita para a esquerda, intrigante para sua decodificação.

Não seria esse o momento de que uma instituição, como o Museu de Arte Contemporânea da USP, embora passando por um período de transição de direção, pudesse ser contemplado com uma obra de Noé, a nutrir seu acervo de arte latino-americana?

Outro ponto: quando Noé se afirma já nos anos 1990 ser um artista compromissado com a América Latina, atribuo esse fato a sua vivência em Nova York e em Paris, onde o contato com artistas de outros países latino-americanos foi natural em intercâmbio e se tornou marcante no período das ditaduras que assolaram nosso continente. Não é, portanto, a meu ver, uma realidade exclusivamente portenha, mas uma circunstância da vida dos artistas de sua geração (como o seria para Gullar, Amaral, Piza, Esmeraldo, Dias, Camargo, Shirò, e tantos outros brasileiros que pelas mais diversas razões viveram no exterior durante os anos 1960 e 70).

El estricto orden de las cosas, 2006, técnica mixta sobre papel, 184 x 168 cm.
Nosso século
Nosso século, inaugurado dramaticamente a 11 de setembro de 2001, tem sido até agora um século de violência. Século pontuado pela guerra do Iraque, do infindável conflito no Afeganistão, pela chamada “Primavera Árabe”, de drones cujas vítimas são 30% mulheres e crianças, da chocante morte de Bin Laden, de Saddam Hussein, e do sanguinolento final do ditador Muamar Kadafi da Líbia. Sem falarmos das cenas incríveis da praça do Cairo, dos conflitos e campos de refugiados da Síria, das cenas de rua da Venezuela, de Kiev, na Ucrânia. Cenas que continuamente espantam pela crueza visual oferecida através dos meios de comunicação a nos brindar espetáculos contínuos da realidade brutal.

Além de estarmos vivenciando entre nós no Brasil, podemos dizer, desde junho do ano passado, manifestações exasperadas de uma população que se expressa bordejando a barbárie e não mais pelo diálogo propositivo.
Que tempo é este em que vivemos?

SERVIÇO
Museu Nacional da República – Visiones
De 10 de junho a 20 de julho
Setor Cultural Sul, lote 2, próximo à Rodoviária
do Plano Piloto – Zona 0 – Brasília
(61) 3325-5220 e (61) 3325-6410 – museunacional@gmail.com


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