[87 de 100] O horror que trazemos na mente, segundo H. P. Lovecraft

coluna87O que seria o “terror gótico”? Um gênero literário? Sem dúvida que sim e teria surgido no século XVIII, na Inglaterra, com a publicação do romance fantástico “O Castelo de Otranto” (1764), de Horace Walpole (1717-1797). O livro trazia elementos que se tornaram algumas das principais características desse tipo de narrativa, como cenários medievais (castelos, igrejas, florestas, ruínas), personagens melodramáticos (donzelas, cavaleiros, vilões, criados), além de temas e símbolos recorrentes como segredos do passado, manuscritos escondidos, profecias, maldições etc. Alguns estudiosos, no entanto, destacam o gótico explora mais o uso da psicologia do terror – medo, loucura, devassidão sexual, deformação do corpo etc. Ou do imaginário sobrenatural, a partir de  fantasmas, demônios, espectros, monstros; reflexões sobre o Poder (colonialismo, o papel da mulher, sexualidade), dos aspectos religiosos (catolicismo, protestantismo, a Inquisição, as Cruzadas) e outras possíveis interpretações.

O conto que dá título à coletânea “A Tumba”, do escritor americano H. P. Lovecraft (1890-1937), publicada no Brasil pela Livraria e Editora Francisco Alves, em 1991, é um bom exemplo do terror gótico na literatura. Na trama, acompanha-se a obsessão de um jovem por uma cripta, em que o então autor em começo de carreira já utilizava com propriedade características marcantes desse subgênero, como morbidez, sobrenaturalidade e loucura – em que tudo se mistura ou combina, de modo a impressionar o leitor. “Meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido um sonhador e um visionário”, diz o narrador. Ele é rico suficiente para não precisar trabalhar, mostra-se sem aptidão para os estudos e para a vida social com os amigos de sua família que têm a sua idade. Dudley passou a infância e a adolescência lendo livros antigos e pouco conhecidos, além de vagar pelos campos e bosques nas proximidades do casarão onde viveram seus antepassados. Mas prefere não falar dessas experiências para não confirmar as “calúnias” sobre seu intelecto. “Basta, para mim, relatar eventos sem analisar causas”. Segundo ele, por carecer da companhia dos vivos, pessoas como ele, inevitavelmente, procuram a convivência de coisas que não são, ou não são mais, vivas. E foi por isso que se refugiou na tumba abandonada dos Hydes. 

O livro também apresenta outras histórias marcantes na obra inaugural de Lovecraft, como “Aprisionado com os faraós”, que ele escreveu (comprovadamente) como ghost-writer do famoso mágico de fugas e ilusionista Harry Holdini (1874-1926). O conto narra uma suposta aventura do mágico em uma catacumba egípcia desconhecida. Estudiosos da obra do escritor, entretanto, identificaram na narrativa seu estilo inconfundível, a exploração de um de seus temas favoritos, os terrores ancestrais que ameaçam o homem contemporâneo. O mesmo assunto, aliás, reaparece nas histórias “A Estranha Casa Suspensa na Neblina” e “O Festival”, que fazem parte da antologia. Mais próximo da ficção científica é a trama de “Entre as Paredes de Eryx”, sobre um astronauta que, em viagem ao Planeta Vênus, perde-se em um labirinto invisível. O famoso “Horror em Red Hook”, que também deu nome a outra seleção de contos do escritor, e “Ele” têm em comum a ambientação urbana, em contraposição a seu estilo rural e bucólico. Mesmo assim, não se engane, uma vez que a cidade em que tudo é ambientado aparece como cenário de objeto de puro horror para os personagens, que se sentem pouco à vontade entre ruas e casas. 

A antologia apresenta cinco das mais antigas histórias de Lovecraft e um bloco com seus últimos textos. A mais distante, que ele escreveu na adolescência, aos 15 anos de idade, é “A Fera na Caverna”, sobre um garoto que se perde em uma caverna, habitada por um monstro mamute. Dessa época, além de alguns textos considerados pouco significativos, de quando tinha apenas seis anos de idade, ele preservou pouca coisa. O resto criou até os 20 anos de idade. Muitos anos depois, já no fim de sua breve vida, o autor destruiu a maior parte, por considerá-los  incertos e imperfeitos, mas que já apontavam o caminho que pretendia seguir como escritor de terror, tipo de escrita sem qualquer status literário nas primeiras décadas do século XX, apesar do sucesso de Drácula, de Bran Stoker (1847-1912), publicado pela primeira vez em 1897. Os contos também apontam uma grande promessa literária, que se concretizaria somente depois de seu falecimento. “A Tumba” traz ainda anotações de sonhos que datam entre 1922 e 1934 e que deveriam servir de inspiração para contos que jamais foram escritos. “O Clérigo Diabólico”, sua última história, incluída no livro, confirma que ele foi fiel até o fim ao estilo que criou e o tornou singular. 

Howard Philips Lovecraft viveu apenas 47 anos. O suficiente, porém, para fazer dele, até hoje, um dos mais importantes e influentes escritores de todos os tempos, com seu estilo e temática inconfundíveis. Levou uma vida nada convencional e, para alguns, para lá de estranha, que ajudou na construção de uma mitologia ao seu redor: depois de perder o pai ainda criança, passou quase toda a existência com a mãe. Retraído e tímido, casou-se somente uma vez com uma mulher bem mais velha que ele, de quem se separou cinco anos depois e foi viver com duas tias até a sua morte. Muito caseiro, adorava a companhia de gatos. De personalidade introvertida, relacionava-se com o além de sua porta por meio de cartas – estima-se que sua correspondência chegue a cem mil mensagens, reunidas depois de sua morte, quando foi redescoberto, em cinco grossos volumes. A sua escolha pelo tema terror pode ser compreendida em um trecho do seu indispensável tratado “O Horror Sobrenatural na Literatura”, como destacou seu tradutor Fábio Fernandes: “A emoção mais forte e antiga do homem é o medo, e a espécie mais antiga e forte de medo é o medo do desconhecido. Poucos psicólogos contestarão esses fatos e a sua verdade admitida deve firmar para sempre a autenticidade e a dignidade das narrações fantásticas de horror como forma literária”. 

Na prática, Lovecraft sabia lidar como poucos com o medo das pessoas, no caso, dos leitores – e aqueles a que ele se dirigia eram supostamente jovens pouco instruídos e de baixo poder aquisitivo que buscavam diversão nos pulps magazines, revistas baratas muito populares na primeira metade do século XX nos Estados Unidos. Mas seu alcance era mais amplo e vasto, pois lidava com emoções e sensações que iam além das classes sociais e atingiam a essência humana, na verdade. Fernandes observa que sua diferença em relação a Edgar Allan Poe (1809-1849), pai do horror moderno, estava no fato do primeiro ter predileção pelo mórbido, enquanto o outro expunha em suas histórias o “Indizível”. 

Assim, muitas vezes, começava a história alertando o leitor de que trataria de um fato tão grotesco e assustador que o mesmo não poderia ser revelado. Logo em seguida, porém, acabava por contar tudo. Fazia isso com um trunfo que marcou sua obra: a arte de descrever situações e ambientes, que deixava seus textos mais envolventes e assustadores. Como, por exemplo, ao mostrar como era Kadath, uma das cidades que faziam parte do mundo dos sonhos. Ou as criaturas místicas ou extraterrestres, originárias dos pesadelos de seus protagonistas. Explicou ele em seu livro teórico sobre o tema: “O mais importante de tudo é a atmosfera, pois o critério final de autenticidade não o recorte de uma trama e, sim, a criação de determinada sensação”. 

Lovecraft levou muito tempo para ter reconhecimento porque sua pequena obra, composta de apenas pouco mais de 60 contos e novelas, não tinha grandes variações estilísticas e temáticas, como observa seu tradutor. Além de escrever textos que assinados por pessoas famosas, teve uma existência restrita ao público das famosas revistinhas baratas americanas policiais, de suspense e de terror, as pulps magazines, produzidas em grande quantidade e descartadas quase como os jornais lidos diariamente. Assim, a importância desse volume para se compreender um autor em formação se completa com a série de fragmentos encontrados em seu acervo. Indicam, presumivelmente, tentativas de se estabelecer como escritor, mesmo de modo rudimentar. “A Tumba”, por tudo isso, é um precioso volume para se compreender como nasce não apenas um autor de histórias sobrenaturais, mas um escritor. Um grande escritor.


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