Reflexões sobre Se não Neste Tempo

A exposição que o Museu de Arte de São Paulo apresenta mostrou o vigor em que se encontra no momento, na Alemanha, uma linguagem artística tantas vezes declarada esgotada: a pintura. Ainda que à primeira vista o título da mostra possa sugerir uma discrepância do momento contemporâneo com os exemplos escolhidos pela curadoria, uma dissincronia em que se encerraria um possível discurso sobre a pintura, um olhar mais atento revela que, se há cisão entre temporalidade e espacialidade, esta se localiza na orientação estética e ideológica dos dois grandes grupos em que podemos dividir os artistas, que remeteriam à existência de dois Estados de tradições culturais idênticas, mas que seguiram trajetórias de organização política e social bem distintas, ou seja, a República Federativa Alemã (a Alemanha Ocidental) e a República Democrática Alemã (a Alemanha Oriental). É claro que essa tensão é tematizada em praticamente todos os trabalhos expostos.

No longo corredor de acesso às salas ao fundo do 1o subsolo, estão alguns dos expoentes da geração que colocou a pintura alemã no centro da discussão internacional da arte contemporânea. Apesar da ausência de Baselitz, Kiefer, Polke, ou mesmo Hödicke, ou seu mais conhecido discípulo, Fetting, nomes já exibidos no Brasil, as telas de Penck, Gerhard Richter, Markus Lüpertz e Immendorf preparam o espectador para a amplitude e profundidade com que a pintura foi exercida por esses artistas já nos anos imediatamente anteriores à queda do muro de Berlim, com o fluxo e o intercâmbio de alguns artistas – muitas vezes na contramão da corrente respectivamente predominante nos dois Estados -, prenúncio da crise política que se avizinhava. O deslocamento de Gerhard Richter, formado em Dresden, para a região de Colônia/Düsseldorf; o intenso intercâmbio promovido por Immendorf e Penck, que termina pela escolha de Penck de estabelecer-se definitivamente no Ocidente, refletem a busca dos artistas no último quartel do século XX por uma retomada das suas tradições culturais mais profundas, em que o romantismo sempre desempenhara um papel formativo, agora informados pelo contato com a pintura internacional, principalmente pelo expressionismo abstrato e pelo pop americanos. Já está distante o período conhecido como desnazificação, o que abre espaço para que uma figuração reprimida nos anos 1950 e 1960 possa florescer e ajudar a trabalhar psicanaliticamente – se é que podemos pensar em psicanálise numa dimensão social – o fantasma da culpa pelo Holocausto e pelos horrores da guerra perpetrados pela geração anterior, deixando transparecer um nacionalismo muitas vezes incompreendido, até pelos próprios alemães.
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Entre os artistas presentes na mostra que tematizaram produtivamente essa discussão estão Martin Kippenberger e Albert Oehlen, que também trabalharam em estreita colaboração. Suas pinturas justapõem situações urbanas peculiares, sempre situando o contexto alemão – como o “A” da palavra “Apotheke” (Farmácia), pairando acima de um skyline noturno -, mas que podem recorrer a um leque de soluções que vão da pintura culta, com o corpo e o espaço na tradição renascentista, à figuração de segunda mão, como nas histórias em quadrinhos, na sinalética urbana e na publicidade. Constituem um contraponto às obras de Bernard Heisig ou Werner Tübke, expoentes da arte da Alemanha socialista. Enquanto o primeiro se inspiraria na arte denunciatória de Otto Dix ou George Grosz, o último aproxima-se de Brüghel, de Bosch, para elaborar uma crônica fantasiosa da história do movimento operário alemão, chegando a trabalhar em comissões públicas, como o grande panorama de Frankenhausen, que lhe tomou uma década de um trabalho, este sim rapidamente envelhecido com o fim do regime, mas que se torna grande atração no turismo nostálgico que toma conta das antigas províncias orientais.

A nostalgia, aliás, também é a marca principal do mais bem-sucedido pintor da atualidade alemã: Neo Rauch. Educado na Academia de Leipzig, ele incorpora imagens gráficas de material educativo que cercaram sua infância e adolescência, e reinterpreta-as numa síntese simultaneamente grandiloquente e patética do socialismo, mostrando trabalhadores em atividades sempre descoladas de uma realidade plausível, mas em cenários fantásticos executados virtuosamente e de impecáveis composições.

A exposição apresenta trabalhos de Daniel Richter, que atualiza em grandes dimensões uma figuração fauvista semelhante ao efeito de fotografias solarizadas, o que o aproxima de um Ensor; de Ackermann, já conhecido do público paulista, com composições geometrizantes alusivas a mapas urbanos; e de Katharina

Grosse e a força de suas pinceladas, diluídas em veladuras vaporosas numa tela gigantesca.

Entre os mais jovens, cito Tim Eitel, pela precisa figuração quase fotográfica em pequenas telas de interesse quase monumental, Eberhard Havekost e David Schnell, pelo estranhamento talvez provocado pela inserção de grelhas geométricas em cenas figurativas ou elementos arquitetônicos em paisagens de colorido complementar e pinceladas à maneira dos impressionistas.

A mostra evidencia ainda a inserção atual da pintura na discussão mais ampla em que dialoga com outras linguagens, principalmente com a instalação, nas salas construídas para os trabalhos de Jonathan Meese, Anton Henning e Thomas Zipp. O destaque dado a Meese somente pode ser explicado pela continuidade na cena atual de certa mistificação da atividade artística capaz de manter a noção de genialidade criadora e a exacerbação da individualidade numa sociedade altamente organizada e previsível. Também os trabalhos de Zipp, que representam cenas de uma hipotética batalha naval entre Samoa e Inglaterra, reforçam a dimensão histórica com que opera a cultura alemã, embora ali, a qualidade pictórica alcance patamar mais elevado.

De outra ordem é a contribuição de Anton Henning, que, ao aproximar a pintura do design e de formas clássicas da arquitetura e da escultura modernistas, redimensiona a prática e a leitura pictórica contemporânea, enriquecendo-a de elementos críticos e questionadores.


Geraldo S. Dias é professor da Escola de Comunicações e Arte – USP e viveu vários anos na Alemanha nos anos 1980


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