Resistência e pertinência artística no Panamá

"Buhoneros y Precaristas" (2003), Jesús Palomino
“Buhoneros y Precaristas” (2003), Jesús Palomino

Entre 20 de março e 20 de abril de 2003, as ruas da Cidade do Panamá foram “saqueadas”, ao estilo de Henry Morgan, por um grupo de artistas-piratas convocados sob as ordens de Gerardo Mosquera e Adrienne Samos.

CiudadMULTIPLEcity foi uma mostra de rua, rebelde e contestatória. Problemática para as autoridades públicas, que negaram permissões e chegaram a remover obras que haviam sido autorizadas previamente. Também houve protestos do setor privado, com ameaças de retirar obras ilegalmente.

A exposição foi incômoda para os poderes panamenhos, que mostraram intolerância em relação a um conjunto de obras de arte no espaço urbano. Sem dúvida, o fato de que não eram mostradas em um museu ou centro cultural provocou tal reação.

Mas a intenção dos curadores e artistas era outra: seguindo os conflitivos antecedentes do país, a ideia era incendiar, buscar briga ou, pelo menos, realizar uma sátira em relação à história local, uma reflexão sobre os espaços comuns da cidade e uma possibilidade de exercitar o pensamento coletivo.

“Ainda que o fogo nunca tenha penetrado no recinto, o abandono burocrático, a endêmica falta de recursos governamentais e o desinteresse generalizado por conservar as marcas vivas da história deixavam ver um espaço que parecia produto de uma terrível catástrofe.” Estas palavras foram escritas por Alberto Gualde, testemunha da ação artística de Gustavo Artigas, que simulou, com a colaboração dos bombeiros inclusive, um incêndio no Palácio Municipal de Panamá.

"Intervención en el Museo de Historia" (2003), performance de Gustavo Artigas
“Intervención en el Museo de Historia” (2003), performance de Gustavo Artigas

Artigas foi, juntamente com Brooke Alfaro, Francis Alÿs & Rafael Ortega, Ghada Amer, Gustavo Araújo, Artway of Thinking (Stefania Mantovani & Federica Thiene), Yoan Capote, Cildo Meireles, Juan Andrés Milanés, Jesús Palomino, Humberto Vélez e Gu Xiong, o responsável pelos feitos. Em sua maioria eram novas produções. Previamente, havia visitado e conhecido tanto o Panamá como os dois curadores, que, por sua vez, queriam transmitir a mensagem: trabalhar sobre a Cidade do Panamá, considerando-a como um ente múltiplo, diverso e difuso. Todo artista não panamenho foi acompanhado por um artista local jovem e por vários colaboradores.

Entre as obras expostas durante aquele mês de 2003 estavam: os 150 blocos de gelo instalados por Juan Andrés Milanés para que os meninos e meninas panamenhos brincassem deslizando-se por sua superfície; os minutos de silêncio na rua convocados por Francis Alÿs e Rafael Ortega (o segundo minuto de silêncio coincidiu com um bombardeio em Bagdá, fato que incidiu sobre o significado do happening); e a complexa iniciativa de Brooke Alfaro, que trabalhou durante mais de um ano com os membros de duas gangues rivais de Barraza, um dos setores mais pobres e perigosos da cidade, gravando vídeos de seus membros e projetando sobre edifícios. A obra, intitulada Nueve, foi seguida por cidadãos que jamais tinham se aproximado do bairro e mencionada com paixão por integrantes das gangues, que se reconciliaram.

Aqueles que se desuniram por culpa da arte foram as autoridades públicas e certos setores privados. Três dos painéis, de caráter crítico em relação ao sistema político, realizados por Ghada Amer, foram removidos à noite, ilegalmente, apesar de estarem com todas as autorizações em dia. Cinco dos dez painéis idealizados por Gustavo Araújo (aqueles nos quais aparecia escrito o modismo local “A Coisa Está Dura”) foram retirados por causa das pressões de empresários, que pensavam que a frase atentava contra seus interesses. Jesús Palomino construiu choupanas que foram retiradas, já que os donos dos terrenos pensaram que eram obras de sem-teto.

Talvez o caso mais estrambótico tenha sido o de Cildo Meireles. Sua obra Panamini se constituiria de um barquinho que ia cruzar o Canal de Panamá. As autoridades negaram a permissão e, além disso, o empresário encarregado da construção do pequeno barco, Chris Rabito, fugiu com o dinheiro sem entregar o trabalho, configurando outro novo pirata no Panamá.
A curadora Adrienne Samos se pronunciou posteriormente sobre esse evento de arte urbana, em relação aos abusos sofridos pelos artistas, afirmando que tais fatos “expuseram o caráter repressivo de várias esferas de poder nesta sociedade: mais que gerentes do espaço público, são seus donos e senhores, ou vassalos desses donos e senhores. As obras de CiudadMULTIPLEcity serviram para expor essas realidades nada bonitas”.


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