Testemunhos do nosso tempo

Os laços culturais entre a França e o Brasil são por demais conhecidos e festejados. No campo do design, contudo, eles ainda são relativamente frouxos. Nosso país concebeu suas primeiras escolas universitárias na área mirando na Alemanha; os fabricantes brasileiros passaram da órbita das influências da Escandinávia para a Itália; e, quanto aos designers de produtos para o habitat, tinham Milão, até pouco tempo, como a meca única – indiscutível e reverenciada.

A falta de maiores intercâmbios com a França não era prerrogativa brasileira. A fama em moda daquele país não era seguida por outros segmentos criativos do design. Nos últimos anos, o governo e associações empresariais locais investiram pesado na corrida em busca da inovação, vista como o caminho para se destacar no cenário internacional. O então presidente François Mitterand deu o exemplo chamando um jovem então desconhecido, Philippe Starck, para renovar os interiores do Palácio dos Campos Elísios – um verdadeiro choque numa mentalidade em que ainda predominavam os estilos suntuosos. Seguiu-se uma intensa ação de valorização da criação francesa histórica e contemporânea, dentro e fora do país.
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É nesse contexto que se pode avaliar a exposição Ícones do Design – França / Brasil, apresentada no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, até 20 de setembro, e no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, de 15 de outubro a 29 de novembro. O curador francês Cédric Morisset idealizou a mostra como um mapeamento do design francês durante cerca de um século, e em sua seleção, que foi de Le Corbusier aos atualíssimos irmãos Bouroullec, propôs-se a apresentar “Símbolos fortes da criação moderna e contemporânea, demonstrando a capacidade dos designers em romper com códigos estabelecidos, reinterpretá-los, encarnar o tempo presente ou antecipar-se a sua época”.

Com a intenção de estimular o diálogo entre a França e outros países, sugeriu exposições que cotejassem o seu elenco sintético de 22 criadores com o de outros países. A iniciativa estreou no Museu de Arte Moderna de Buenos Aires, em 2008, em que o professor e designer Ricardo Blanco ficou encarregado da seleção argentina. Convidada a responsabilizar-me pela escolha brasileira, penei para fazer uma síntese – pois, se as curadorias implicam não somente incluir algumas coisas, mas sobretudo excluir muitas outras, em uma exposição com tantas e tão dramáticas exclusões como esta, a subjetividade inerente ao trabalho curatorial é ainda mais evidente.

Embora a mostra não tenha sido concebida como um paralelo entre os dois países, é possível enxergar alguns pontos em comum nas seleções. Ao contrário do senso comum, que vê o design como a cereja do bolo de objetos caros para a elite, ali se vê, de um lado, a caneta Bic, que revolucionou o jeito de escrever no mundo e se tornou best-seller, com cerca de cem bilhões de canetas vendidas entre 1950, ano de sua criação, e o início dos anos 2000. De outro, as sandálias Havaianas, de 1964, que se popularizaram país afora como um calçado prático e barato, e recentemente conquistaram posição no universo do glamour, vendendo 20 milhões de pares em 60 países no ano de 2007. Na montagem da mostra, o arquiteto Zaven Paré reforçou o caráter icônico de ambas as criações, utilizando um espelho para que o público pudesse ver não o objeto em si, mas o seu reflexo.

Em um outro nível, tem-se a espreguiçadeira LC4, concebida em 1928 por Le Corbusier, Pierre Jeanneret e Charlotte Perriand. Fiel a seu fascínio pela estética industrial, Le Corbusier a chamou de “máquina de descansar”. O uso de tubos metálicos originalmente destinados à aviação chocou o mundo bem comportado das artes decorativas naquele momento, ainda presas aos veludos e estofados suntuosos nos estilos de todos os “Luizes”. Como lembra Cédric, ela se tornou “uma das peças mais celebradas da história do design, objeto referência dos mais imitados no mundo”. Do lado de cá do Atlântico, a rede pode ser vista como a nossa chaise longue por excelência. Se não tem a força midiática da LC4, é provavelmente um dos objetos de maior longevidade no mundo. Nascida na América tropical, já fazia parte da cultura indígena quando os portugueses aqui chegaram e foi plenamente assimilada pelos colonizadores. Permaneceu viva ao longo dos séculos e hoje pode ser vista de norte a sul do país, na casa do rico e na casa do pobre, com um design que se mantém basicamente o mesmo, no entanto sempre incorporando variações.

No campo dos equipamentos para o habitat, nem só de criações espontâneas vive o design brasileiro. Na faixa das décadas de 1930 a 1960, Joaquim Tenreiro, Sergio Rodrigues, Zanine Caldas, Lina Bo Bardi, Paulo Mendes da Rocha e Michel Arnout comparecem com obras-primas de primeira grandeza, assim como os franceses Jean Prouvé, Xavier Pauchard, Pierre Paulin, Olivier Mourgue e Henry Massonnet. Suas peças ganharam recentemente uma valorização e passaram a ser vendidas a peso de ouro em antiquários modernos, neologismo dos estabelecimentos que se espalham pelo mundo, dedicados a vender os objetos do início do modernismo.

Entre os objetos mais recentes, destacam-se as criações de Philippe Starck e dos irmãos Campana, que compartilham a capacidade de criar objetos que ecoam fundo no imaginário coletivo de nosso tempo. Starck é também um gênio do marketing, como se pode ver por um de seus últimos projetos, feito para a Baccarat, utilizando o requintado cristal preto. Por ter um manuseio complexo, com muitas perdas no processo produtivo, o que resulta em produtos extremamente caros − o material havia sido relegado a um público restrito. Starck propôs então a comercialização de copos em um estojo com seis exemplares, dos quais apenas um é perfeito, enquanto os outros têm pequenas imperfeições, batizando a coleção exatamente de “um perfeito”.

Ícones do Design – França-Brasil permite uma aproximação cultural entre os dois países e incentiva uma reflexão que é universal sobre o que são os ícones. “O que confere o estatuto de ícone a um objeto? A história? O sucesso comercial? A notoriedade? A escolha e o reconhecimento dos aficionados?”, pergunta o curador francês. Sua resposta: “Sem dúvida, tudo isso simultaneamente. Mas também, sem dúvida, a capacidade do objeto de marcar simbólica e visualmente a sua época, ao mesmo tempo em que relega seu valor de uso a uma posição secundária”.

Alguns critérios sobressaem mais do que outros em cada um dos produtos da seleção. O conjunto dos objetos expostos comunga, assim, cada um a seu modo, um valor que transcende o meramente funcional ou utilitário, incorporando também dimensões simbólicas e emocionais, intimamente relacionadas a processos culturais, sociais e econômicos. Na confluência de critérios, observa-se que a maioria dos objetos atua como chaves de acesso à memória afetiva, estabelecendo uma conexão emocional, às vezes até amigável, com os usuários. Quase todos, ainda, ao captar e expressar o espírito de seu tempo, acabam por transpassar o portal da temporalidade. Eles permanecem sempre jovens; superando o tempo.


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