“A fundação é tudo, menos casa”, afirma rapper Renan Inquérito

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Depois da entrevista à Brasileiros, na segunda-feira (8), o rapper Renan Inquérito entrega – junto com o seu último disco, Corpo e Alma – uma dezena de pílulas aos seus dois entrevistadores. “Isso aí é pó, mano”, diz, com um sorriso irônico. Segundos depois, completa: “Pó esia”, desta vez com o rosto de satisfação. Nas pílulas, semelhantes às encontradas pela polícia com os traficantes de drogas, é possível puxar pequenos versos escritos por ele mesmo, como “Socorro imediato, CPF na nota. A farmácia é uma biqueira com CNPJ”, ou “Saudade, palavra singular que dói no plural” ou ainda “Sete palmos peito adentro eu me enterro no buraco que você deixou”. 

É com as pílulas, livros de poemas e letras clássicas de hip-hop na cabeça que Inquérito visita constantemente unidades da Fundação Casa, a instituição socioeducativa paulista que substituiu a problemática Febem, para liderar oficinas de poesia e de música com os adolescentes infratores. Nesses encontros, consegue observar detalhes sociais que motivam os adolescentes a entrar no crime, como o comportamento da mídia e as deturpações de alguns valores. “O moleque prefere morrer com 20 anos tendo um Mizuno de 900 paus no pé ou um óculos da Oakley de mil reais, do que passar anos num banco escolar ou num trampo”, observa ele. Dessa convivência, tira boa parte da inspiração para suas letras – Corpo e Alma critica o preconceito racial e a má educação brasileira.

Geógrafo de formação, com mestrado na Unicamp e doutorado na Unesp na área de Geografia, Inquérito chegou a dar aulas no ensino médio público, mas hoje admite que ensina mais fora de aula do que dentro dela. No início desta semana, ele deu a seguinte entrevista à Brasileiros:

Brasileiros – Como você enxerga a discussão sobre a maioridade penal no Brasil?
Renan Inquérito –
É uma discussão superficial. Quando você coloca que 80% das pessoas no País são a favor de reduzir a maioridade penal é a mesma coisa que dizer que 80% dos eleitores de São Paulo votaram no Tiririca. Ou seja, estamos abrindo outra discussão: não é se o Tiririca é bom ou não, mas onde é que está o consentimento político da população. Essas pessoas que são favoráveis a diminuir a idade penal são alimentadas por programas policiais que passam no horário de pico da televisão brasileira. Naquele horário do fim da tarde em que as pessoas estão cozinhando, comendo, às vezes nem prestando atenção no programa, mas ouvindo o que os apresentadores estão dizendo. E o que eles estão dizendo? Sangue. A mesma tiazinha da periferia que é a favor da redução é a que tem um filho em situação de vulnerabilidade social, que pode ser um menor infrator, que pode ser internado em uma instituição socioeducativa sem ter os direitos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garantidos. A mesma tiazinha que nem sabe o que é ECA.

O que leva os meninos a se envolverem com o crime?
A escola não dá conta mais, a escola não seduz, a escola expulsa, não é um ambiente agradável, não oferece lazer, esportes, nada. Tem o ECA, que não é cumprido, porque se assim fosse diminuiria drasticamente o número de menores internados. E existe outra coisa: dos meninos que estão na Fundação Casa, 80% estão lá por tráfico de drogas. É uma taxa ínfima que está lá por crimes violentos. Há um alto número de menores cooptados pelo tráfico de drogas, então devemos discutir, no Código Penal, o tráfico de drogas, ou mais além, a descriminalização das drogas, que vai incidir no tráfico e, então, no número de meninos presos. É um debate raso feito na consequência e não na causa. A fundação é tudo, menos uma casa. Os caras estão plantando crisântemos e querendo colher rosas. Não vai colher rosas nem a pau. A redução da maioridade penal não é a solução de forma alguma.

Quais são os atrativos que o crime oferece para esses menores?
Acho que é uma injustiça também jogar toda a culpa em cima da escola. Ela está sucateada. Estamos vendo isso. Fora que não é apenas a escola que serve para dar estrutura educacional, mas a família tem um papel fundamental nesse processo. Vemos que existem famílias desestruturadas, que empurram esse papel para a escola. Isso vira uma bola de neve que vai estourar lá na frente. Aí, ao invés de melhorar a escola, melhorar a base, eles querem encarcerar os menores. A sociedade que a gente vive, essa sociedade do ter para ser, em que os jovens são bombardeados por propagandas, comparações, padrões de beleza que vão deturpando e invertendo os valores, faz com que o moleque prefira morrer com 20 anos tendo um Mizuno de 900 paus no pé ou um óculos da Oakley de mil reais, do que passar anos num banco escolar ou num trampo. A televisão mostra que o exemplo de sucesso é ter um carro da hora, umas minas da hora, estar feliz, bem arrumado, e aí quando o moleque sai de manhã para pegar o ônibus, encontra a galera voltando do trabalho de madrugada acabada, tendo pouco tempo para os filhos, pouco tempo para o lazer. O que um moleque desse pensa: “Esse aí não é o exemplo de vitória que eu vi na televisão”. E então ele procura um caminho de vitória mais rápido, por meio do futebol ou do crime, por exemplo.

Renan Inquérito - Foto: Márcio Salata
Renan Inquérito – Foto: Márcio Salata

 

E daí começa o envolvimento com crimes menores.
Exato. Você pega uns meninos que vão assaltar postos de gasolina sabendo que hoje em dia a maior parte dos pagamentos é feita no débito, no crédito. Fica pouco dinheiro ali no caixa, porque os caras do posto ainda jogam tudo no cofre de hora em hora. Ou seja, esses moleques estão arriscando o pescoço por 200 reais. Daí quando roda tem que assinar o [artigo] 157, [assalto à mão armada], por causa de 500 reais, saca? Aí você pensa: “Pô, mas roubar 500 reais?”. Mas para quem não tem nada, 500 reais é 500 reais, mano. É dinheiro pra caralho.

O funk ostentação funciona como uma representação disso?
Bom, da mesma forma que eu não culpo apenas a escola por essa alienação, não dá pra culpar só o funk ostentação pelo problema. O funk ostentação é uma extensão do comercial de margarina que passa na televisão, onde todo mundo é branco, toma suco de laranja, come pão de não sei quantos grãos, todo mundo com dentes brancos, nada diferente dos clipes desse tipo de funk, onde os moleques aparecem com carrão, com moto, mesmo que eles sejam alugados, emprestados ou até resultados de atividades criminosas. A felicidade ali é um fetiche.

Em seu trabalho na Fundação Casa, você notou certa hierarquização do crime? Ou melhor dizendo: o menino, quando é internado, ganha respeito entre os demais envolvidos no crime por ter vivido aquela experiência?
A glamourização não precisa nem ser observada apenas na Fundação Casa. Quando você chega na sala de aula na segunda-feira de manhã e ouve os adolescentes discutindo quem bebeu mais, quem passou mais mal, quem vomitou, quem agrediu quem, ou seja, uma competição de poder, percebe também essa glamourização está em tudo. Tem também para quem saiu com mais mulher, quem usou mais droga. “Ah, você fumou unzinho, eu fumei uma tora. Depois ainda cheirei…”, ou “Ah, mas você não ficou bêbado. Eu fui parar no pronto-socorro, eu quase entrei em coma alcoólico…”. Essa competição é muito comum, sim. A Fundação Casa é apenas mais um reflexo disso.

Mas, especificamente lá dentro, isso é mais forte?
Pode ser. Em um dos trabalhos que fui fazer na Fundação Casa me alertaram que tinha um menino  que era criminoso, que se ele direcionasse para ninguém participar das oficinas, ninguém participaria mesmo. Esse moleque era o piloto da unidade. No primeiro encontro foi todo mundo, inclusive ele, ou seja, 55 moleques. O que aconteceu foi que esse moleque passou a se envolver demais na atividade e ele era uma liderança lá dentro, ou seja, todo mundo se envolveu demais também. E daí, trocando ideia com ele, eu descobri que ele tinha crescido na igreja e que ele cantava quando era criança. Teve uma apresentação do dia das mães na unidade e era esse moleque que ensaiava os outros, porque eu não podia ir lá toda semana. Ele puxou o bonde de ensaiar os outros. Depois da apresentação ele ainda veio me pedir pra dar uma força na música pra ele quando ele fosse liberado de lá. Esse moleque era o criminoso que tinham me alertado. A escola faz isso a todo o momento: esse menino não sabe matemática? Ele é burro.  Mas esse burro pode ser o melhor em educação física, em redação, em teatro, mas a escola quer colocar esse moleque numa caixinha. A culpa não é do professor, porque ele não está vendo um, mas está vendo 30 ali na sala de aula. Nessa a gente perde um monte de talentos. A energia que está sendo podada na escola vai sendo canalizada por outros meios, entre eles o crime.

O hip-hop, nesse sentido, funciona como uma ferramenta educacional?
Sou suspeito para falar do hip-hop como ferramenta educacional. Sou professor e hoje atuo muito mais fora da sala de aula do que dentro. O que me permite atuar fora da sala de aula não é meu diploma de Geografia da Unicamp, mas a vivência de 15 anos de hip-hop que tenho perambulando por todas as periferias do Brasil. O Grupo Inquérito tem uma entrada muito grande nas periferias, nas penitenciárias, na Fundação Casa, em presídios de regime semiaberto, regime fechado, em presídio feminino. Fizemos coisas em todos esses locais. O hip-hop permite essa ponte. E é única música que ainda tem um viés de conscientização e de educação. Claro que não dá para colocar nas costas de um Mc o peso de um professor, de uma escola, mas o hip-hop conecta muito mais. É muito louco!

Essa ponte funciona de que forma quando você a constrói na Fundação Casa?
Eu cheguei uma vez lá para fazer uma oficina de rap. Aí o diretor da unidade disse que eu não podia fazer uma oficina daquela, porque o rap faz apologia ao crime, à violência, essas coisas. Ele deixou fazer oficina com os meninos se fosse de poesia. Daí pensei: “Vou chegar lá, fazer poesia e, quando ele for embora, montar uma oficina de rap”. Mas ele não foi embora. Então, fiquei sem saber o que fazer, tentando me lembrar de alguma poesia, alguma coisa, mas não tinha nada na cabeça. Falei para os moleques: “Vamos fazer uma cena de poesia”. Eles ficaram me olhando e falaram: “Ah, poesia é coisa de veado. Você tá tirando!”. Respondi que se ninguém gostasse eu iria sair fora e comecei a declamar: “O que é o que é, clara e salgada, cabe no olho, pesa uma tonelada, tem sabor de mar…”, e eles continuaram declamando. Eu interrompi e disse: “Ué, vocês não disseram que não gostavam de poesia?”. E eles responderam: “Mas isso aí é Racionais”. “E Racionais é o que?”, rebati. “Ah, Racionais é rap”, devolveram eles. E daí eu terminei: “E rap é o que?”. Eles ficaram em silêncio e eu continuei: “Rap não é ritmo, amor e poesia? Se eu colocar um ritmo em uma poesia não pode virar um rap? Oh, vou fazer outro rap pra vocês: [começa a cantar] ‘Vocês que atravancam meu caminho, ah, passarão, eu passarinho’”. Os caras ficaram olhando e falaram: “Pô, legal esse rap aí. Mas a gente não conhece”. E eu respondi: “Isso é Mário Quintana”. “Ah, tô ligado quem é esse Quintana, é o Mc Quintana, né?”, eles disseram. E assim eu apresentei aos meninos o Mário Quintana, que sequer conheceu o rap, mas que podia ser um Mc. Se você achar um caderno na rua com versos do Racionais e não conhecer Racionais, vai pensar que aquilo é poesia. O que torna aquilo rap é a voz do Mano Brown. Se o Brown cantar uma poesia do Carlos Drummond de Andrade, vira um rap feito no Capão Redondo e ninguém vai saber sequer quem é Drummond.

E com isso você conseguiu, digamos, “ganhar” a atenção deles?
Sim, já era. Você ganha a confiança dos caras, porque teve abertura, que é o mais difícil. Depois é só manter. Eu levava uma poesia e uma letra de rap e não dizia qual era qual. Chegou uma hora que eles estavam fazendo poesia e não tinha rótulo. Teve um dia que eu falei pra eles: “Vamos fazer uma poesia nossa. Falem palavras que surgirem na cabeça de vocês agora”. E começou a vir “saudade”, “casa”, “família”, coisas que estavam latentes para eles. Decidi que iria fazer uma poesia com a palavra “casa”, porque percebi que podia brincar com os vários significados da palavra. Estar na Fundação Casa não é a mesma coisa que estar em casa, com os pais, os vizinhos, etc. A casa onde eles estavam só existia no nome, porque casa remete ao lar. Aí alguém lembrou das Casas Bahia, outro falou da Casa Branca e ainda mais um que disse aquela expressão “a casa caiu”. Fizemos, então, nossa primeira poesia, que é assim:

Liberdade e grade
rima só que não combina.
Não Casa!
Mó mamão! Fita dada, tá em casa!
De repente uma casinha, uma cilada,
caiu a casa!
Disciplina e humildade: são normas da casa.
Muita calma, sem estresse: a casa agradece.
Casa de Detenção, Casa Grande & Senzala, Casas Bahia,
Casa Branca, casa de caboclo, casa própria,
Minha Casa Minha Vida,
Minha família, minha base, meu alicerce,
Minha fundação.
Casa,
tirando o “C”, fica “asa”
Com uma asa quem sabe eu até voava, voltava,
casa, comida e roupa lavada, amor:
“Casa comigo vai, por favor?”
A casa caiu!
Era uma casa nada engraçada, não tinha mãe, pai, não tinha nada. Ninguém podia sair dali, enquanto a pena não se cumprir.

Desse dia em diante a oficina de poesia ficou foda. O diretor queria entender o que tinha acontecido. Ele me disse que tinha tentado capoeira, isso, aquilo, que nada tinha nadado certo. Ali foi essa conexão com o hip-hop que funcionou.

Os internos da Fundação Casa que você teve contato estão atentos ao tema da redução da maioridade penal que está acontecendo no Brasil?
O que acontece na Fundação Casa é que tem uma parte dos meninos que é cooptada pelo crime organizado mesmo, que está seduzida pelo crime, que já tem mentalidade de criminoso. Tem uns moleques monstrão lá, que está internado pela terceira vez. Mas a maioria é de moleque primário, mano. Moleque que caiu lá de bobeira, que roubou um posto de gasolina, levou droga de um lugar pro outro…

Arrependidos?
Eu não diria arrependido. Diria assustado. Os moleques não têm nem noção mesmo, sabe? A maioria é réu primário, envolvido com tráfico de drogas, essas coisas. Só que quando você vai assistir televisão, só passa os meninos que arrancaram cabeça. Não é assim. Não existe só moleque que arranca cabeça. Tem moleque lá de 12 anos, 13 anos, sabe? Não tem base. E tem outra coisa: você vai conversar com o moleque, o pai dele está preso na penitenciária de Presidente Venceslau, a mãe é prostituta ou está presa porque levou droga para o pai, e ele foi criado pela vizinha, pela tia, tá ligado? Não tem a mínima estrutura. Um moleque desse tem até a sorte de cair na Fundação Casa, porque ele poderia ter morrido na rua.

É o problema social que todos que são contra a redução alertam.
É que é inconcebível pra gente um moleque estar na Fundação Casa em um modelo de sociedade como o nosso, onde supostamente existe escola para todos, oportunidade para todos. É uma teoria muito bonita, mas não é a realidade. Só funciona na novela. Na prática, esses meninos não estão frequentando a escola ou, pior, a escola que eles frequentam não está dando conta. O que é engraçado é que o contrário dessa situação não choca: um menino que estudou no Colégio Marista a vida toda, que fez intercâmbio pelo Rotary, que na formatura do terceiro colegial foi para Porto Seguro e que depois, quando entrou na faculdade, ganhou um carro “popular” do pai, quando esse moleque entra em uma atividade criminosa, não choca a sociedade. É estranho, porque esse é o caso verdadeiramente chocante. Um menino desses teve toda uma estrutura, um caminho, um berço, e mesmo assim se envolveu no crime. Pior ainda é quando um juiz, que tem um puta discernimento, uma puta condição social, quando se envolve em um crime não choca tanto do que quando acontece um desses casos com menores.


Comentários

2 respostas para ““A fundação é tudo, menos casa”, afirma rapper Renan Inquérito”

  1. Avatar de PAMELA RUFINO
    PAMELA RUFINO

    Sábias palavras!

  2. Renan Inquerito *-* Top 😛

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