Quando o assunto é combate à violência e à violação dos direitos humanos, o cientista político carioca Paulo Sérgio Pinheiro é um dos nomes mais expressivos e respeitados dentro e fora do País. Aos 71 anos, o carioca, diplomata da ONU (Organização das Nações Unidas), tem mais de quatro décadas de atuação no monitoramento e mediação de conflitos nacionais e internacionais. Desde 1995, desempenhou diversas funções na ONU onde, atualmente, preside a Comissão Internacional de Investigação para a Síria. No Brasil, foi Secretário de Estado de Direitos Humanos no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, além de integrar o grupo de trabalho nomeado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva para a preparação do projeto de lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade, da qual foi o terceiro coordenador, entre fevereiro e maio de 2013. No combate à violação da cidadania na infância, foi também, por oito anos, relator dos Direitos da Criança da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos).
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Em agosto de 2012, Paulo Sérgio Pinheiro foi capa da edição 61 de Brasileiros (leia a íntegra da reportagem O Pacificador). Na entrevista a seguir, o cientista político enriquece nosso painel de opiniões sobre a proposta de redução da maioridade penal, ao tratar de questões como a influência das chamadas “bancada da bala” e “bancada evangélica”, a ineficácia da política nacional do combate às drogas e a falência do nosso sistema carcerário.
Brasileiros – Por que o senhor defende que a sociedade brasileira deve ser contrária à redução da maioridade penal?
Paulo Sérgio Pinheiro: Nos países mais desenvolvidos, onde o tratamento dos adolescentes em conflito com a lei é melhor que na América do Sul, a tendência é evitar que eles entrem no sistema penal e que sejam criminalizados como adultos porque, na maioria desses países, as prisões sequer funcionam em termos da reabilitação e da reinserção social de adultos. No Brasil, que já é a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 700 mil presos, se observarmos a situação de superlotação do sistema penitenciário, onde estão essas pessoas e não cabem 300 mil, evidentemente, a proposta de redução da maioridade penal não vai atender o principal interesse da população que é ter menos criminosos atuando em nossa sociedade. Os parlamentares que estão propondo a PEC 171/93 não dão a menor importância para o que estamos falando, por claro interesse. A maioria deles vem da bancada da bala, financiada por empresas de segurança privada e fabricantes de armas, e da bancada evangélica, que tem uma leitura fundamentalista e totalmente equivocada sobre a questão do castigo na Bíblia.
Essa PEC tramita há mais de 20 anos. O senhor acha que essa junção de fatores foi o que permitiu sua aprovação?
Claro. Essa aberração só foi possível porque essa é uma dos piores Câmaras e um dos piores Congressos eleitos no Brasil depois da redemocratização. Evidentemente, o principal responsável por esses políticos estarem no poder é o eleitorado brasileiro, que escolheu justamente pelo mau funcionamento do sistema político e a má formação da cidadania na população. A bancada da bala e a bancada evangélica foram maciçamente votadas e, agora, aproveitam a conjuntura de crise para impor à presidente da República uma PEC que não pode ser vetada. E o que é mais lamentável: há, inclusive, lideranças democráticas que estão apoiando essa excrescência. Se a PEC passar pela votação no Senado Federal, um quórum elevado, a presidente não poderá vetá-la. Esse é o problema mais grave.
Como o senhor analisa o tratamento dado pelos grandes veículos de imprensa ao tema?
Não gosto de demonizar a imprensa. Claro, há certa excitação por parte dos programas da mídia eletrônica, os programas da bala (o cientista político refere-se a atrações como Cidade Alerta e Brasil Urgente), mas estamos cansados de saber que eles são absolutamente incapazes de levar um debate sério sobre políticas de segurança. Claro, isso tem um peso, mas a imprensa escrita, por exemplo, trata a questão de forma dividida. Há artigos lamentáveis apoiando a PEC, mas existem reportagens em jornais, como a Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, com uma visão mais diversa e sofisticada. Hoje, a opinião pública tem muitas fontes de informação, inclusive nas mídias sociais. Antigamente, havia jornais impressos e programas de rádio que pingavam sangue e, atualmente, esse jornalismo se transportou mais para a televisão. Claro, parte da população fica indignada ao ver adolescentes e crianças cometendo infrações, mas o número de envolvidos em latrocínios, por exemplo, é ínfimo. Ainda que eu não queira ser muito panfletário, é por isso que considero a proposta oportunista e demagógica. Colocar mais adolescentes na cadeia não vai refrescar absolutamente nada. O crime organizado está gargalhando da sociedade, justamente porque o suposto objetivo da bancada da bala é tornar mais difícil o aliciamento de adolescentes. Além de a redução ser conversa para boi dormir é uma medida completamente discriminatória, afinal quem serão os pilotos de prova dessa PEC? Claro, como sempre os afrodescendentes, os pobres e os miseráveis. Não serão os filhos dos brancos, os filhos da bancada da bala ou dos grandes líderes evangélicos que serão presos. Será exatamente a mesma população que está nas prisões de todo o País. A medida é covarde, incompetente e nos faz reiterar que o Legislativo e o Judiciário brasileiro não têm o mesmo foco pesado em relação a grande criminalidade. Caso contrário, os bicheiros não estariam morando na Barra da Tijuca e na Avenida Atlântica. Hoje, felizmente, a questão da corrupção está sendo mais combatida, mas ainda há uma impunidade enorme para as ações do crime organizado e, por demagogia, é mais fácil pegar o elo mais fraco da corrente.
Muitos que são contrários à redução defendem que a medida confunde justiça com castigo…
Sim, é uma questão clara de criminalização, porque é muito mais fácil fazer toda essa agitação e convencer a sociedade que devemos incriminar a faixa etária dos 16 aos 18 anos. Há outra dimensão, que escapa totalmente a esses legisladores incompetentes, que é o tratamento internacional. A norma mundial atualmente diz que, na impossibilidade de ter uma idade para cada um dos 192 países que compõem a ONU, a Convenção Sobre os Direitos da Criança estipulou a fronteira dos 18 anos para a maioridade penal. Não tem essa de “ah, mas ele pode votar com 16”… Isso não cola. A normativa internacional entende sob outra ótica as infrações cometidas por adolescentes, especialmente a maioria dos infratores brasileiros, que são deseducados, pobres, miseráveis e tem pouquíssima condição de atinar em que estão se envolvendo. Quem defende a redução não sabe nada sobre o ECA (o Estatuto da Criança e do Adolescente), porque, se o tivesse lido, teria instrumentos de sobra para lidar de forma adequada com o problema, mas é claro que muitos políticos de todos os estados da nossa Federação simplesmente desconhecem o ECA.
Aliás, dias após a aprovação da PEC na Câmara, a revista Carta Capital publicou reportagem na qual afirma que cerca dos 60% dos deputados favoráveis à redução já foram ou estão sendo investigados. Como o senhor vê esse dado?
Dados como esse não repercutem, mas nos levam a concluir que eles não têm nenhuma autoridade moral para legislar a respeito de uma questão tão complexa como a redução da maioridade penal. Outro absurdo que está nos jornais de hoje: por ter passado dos 70 anos, um deputado não vai ser responsabilizado pelos graves crimes em que está envolvido. Isso ocorre no mesmo País em que legisladores querem sancionar uma lei para criminalizar a faixa etária que é absolutamente minoritária no cometimento de delitos graves. É lamentável. Estamos passando por um momento deprimente e eles estão se aproveitando disso até mesmo por saber que pessoas historicamente contrárias a decisões como essa estão entrando na mesma canoa furada. Torço muito para que o debate público aumente, no decorrer do processo de aprovação, que demandará alguns meses.
A questão dos menores infratores está intimamente ligada ao tráfico de drogas. O senhor acha que a incompreensão dessa dimensão adia, por exemplo, uma revisão da política de combate às drogas no País?
A política repressiva com relação às drogas não tem nenhum impacto efetivo. Há décadas, estamos apenas enxugando gelo. De certa forma, essa política de combate é comparável com a iniciativa de redução da maioridade penal. Na impossibilidade de ser efetivo na luta contra os grandes traficantes é mais fácil penalizar, por exemplo, o consumidor e a faixa etária dos 16 aos 18 anos, muito atingida no País pelo drama do crack. A proliferação das “cracolândias” no Brasil vem justamente da incompetência em lidar com o problema das drogas. Infelizmente, essa é outra dimensão não discutida que envolve diretamente os mesmos adolescentes que os deputados estão querendo colocar em prisões de adultos.
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