O Estado Novo de Eduardo Cunha

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Foto: Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Fotos Públicas (18/04/2016)
O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Foto: Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Fotos Públicas (18/04/2016)

A péssima repercussão da vitória dos corruptos e de seus cúmplices, no Brasil e no exterior, desmoralizou completamente o processo de impeachment.

Importantes jornais e revistas internacionais, como The Independent, New York Times, Der Spiegel e outros dividem suas páginas entre a perplexidade e o sarcasmo.

Suas manchetes destacam que uma gangue de ladrões está julgando uma presidente honesta, que um corpo de deputados invocando Deus, família e outros argumentos que não têm nada a ver com a discussão, jogou na fogueira a mandatária por crimes que não existem, transformando o templo da democracia num ringue de boxe, na arquibancada de um jogo de futebol ou num sambódromo, abrindo um carnaval fora de época num momento que exigia seriedade e bom senso porque dele dependia o presente e o futuro de 200 milhões de brasileiros que participam com sua força de trabalho da sétima economia do mundo.

No Brasil, mesmo os que torciam pelo impeachmentm, repudiam o espetáculo grotesco nas redes sociais e nas conversas de botequim. Os adeptos do sim são escrachados até nas transmissões esportivas, viraram motivo de deboche e de zombaria.

Seria de se esperar que essa repercussão – não apoiada pelos principais órgãos de imprensa do País, cujas manchetes, apesar da oposição de alguns colunistas, vão na direção oposta, maquiando com as tintas da seriedade um circo de horrores – sensibilizasse a última instância do Judiciário, habitada, supostamente pela crème de la créme dos juristas nacionais, versados em vários idiomas, donos de incontestável saber jurídico, cujo QI é infinitamente superior ao dos deputados que jogaram o Brasil na vala comum do anedotário mundial.

Há poucas esperanças, no entanto, a julgar por suas últimas decisões e seu silêncio, de que o STF dê um basta nessa pornochanchada cujo autor do argumento, roteiro, direção e produção, apesar de tudo o que representa, saiu – pasmem – fortalecido do episódio.

Ninguém percebeu, mas Eduardo Cunha assumiu, ontem, o poder do País. 

Ao declarar que não reconhece mais a existência do governo Dilma, mesmo antes de o Senado se pronunciar – em outras palavras, declarou a Presidência vaga, repetindo Auro Moura Andrade em 1964 – ele confirmou o que a nação já desconfiava: trata-se de um golpe. O golpe do Cunha.

Cunha tomou o poder ao declarar não só que não há mais governo Dilma, mas também que não haverá mais votações na Câmara enquanto o Senado não levar adiante o impeachment.

Portanto, quem manda no Senado também é ele, e não Renan Calheiros, guindado à condição de espectador privilegiado da crônica de um golpe anunciado.

Ao proclamar que a Câmara não votará mais nada, embora ela continue aberta, Cunha a fechou, tal como Getúlio fez em 1937, como se vê no magnífico Imagens do Estado Novo (1937-1945), a obra prima de Eduardo Escorel, que, por uma terrível ou bendita coincidência, foi vista em São Paulo na véspera da votação espúria.

Getúlio acabou com os partidos sob o pretexto de que seriam os responsáveis pela instabilidade política e social e decretou a intenção de governar em contato direto com o povo, que passou a lhe mandar cartas com sugestões sobre os mais diversos assuntos nacionais. E que eram, naturalmente, engavetadas.

Ao derrotar o governo por 2/3 da Câmara, Eduardo Cunha também acabou com os partidos, pois provou que partido algum tem a maioria, quem tem a maioria é ele. Depois de domingo, diante da fragilidade escancarada do PT, podemos concluir que há um partido só: o Partido do Cunha.

O documentário, cuja força reside mais nas imagens do que nas palavras, traz à luz tenebrosos paralelos entre o golpe de Getúlio e o atual.

Tal como hoje, ele se apoiou numa Constituição, por isso ninguém podia acusá-lo de ilegalidade. A lei, embora elaborada por um serviçal, o jurista Francisco Campos, pavimentou o caminho da ditadura, com total concordância da imprensa. Nos dias atuais, o STF, que se proclama guardião da constituição nada encontra nas decisões monocráticas de Cunha que a contrarie. Nem a imprensa de massa.

Tal como em 1937, Deus e a bandeira nacional são, hoje, elementos fundamentais. O documentário de Escorel revela que a bandeira foi usada pela primeira vez como símbolo patriótico pelo Estado Novo. Cenas impressionantes mostram o primeiro ato da ditadura: uma cerimônia grandiosa, na capital da República, acompanhada por uma multidão, na qual as bandeiras estaduais foram incineradas, uma a uma, surgindo em seu lugar, com as bênçãos da igreja, representada por um arcebispo e artistas, representados por Villa Lobos, que regeu um coro, a gigante e única bandeira verde e amarela. Bandeirinhas foram agitadas freneticamente pelos populares sorridentes que, tal como hoje, desconheciam que estavam saudando a transformação da democracia num regime de força.

Tal como fez Getúlio com os que se levantaram contra o golpe de 37, Cunha já ameaça processar deputados que o cobriram de elogios na votação de domingo (17). Seus fiéis 2/3 certamente lhe darão sinal verde.

Tal como Getúlio, ele usa todos os meios de comunicação a seu favor, inclusive a TV Câmara. Não passa um dia sem dar entrevistas, ocupando muito mais espaço na imprensa do que qualquer outro líder, inclusive a presidente da República.

Enganam-se os que pensam e informam que a seguir do governo Dilma virá o governo Temer. Não, senhores, virá o governo Cunha. É ele quem vai fornecer – graças à força que conquistou domingo – a espinha dorsal do governo Temer.

Ou Temer obedece ou ele o derruba como tenta derrubar Dilma. Não importa que sejam sócios; o sócio mais poderoso é ele. Foi ele quem deu a vitória a Temer. Temer é o seu poste.

Ninguém mais segura Cunha. O STF vai continuar fugindo à responsabilidade, alegando que a questão de sua cassação é de “interna corporis” e a “interna corporis”, na qual 2/3 lhe pertencem, formará fileiras em sua defesa, esperançosa de, assim como ele, escapar às denúncias que os assolam.

Empossado formalmente na vice-Presidência – mas presidente da República de fato –  todos os malfeitos que mancham sua biografia, aqui e alhures, serão fatos do passado: quem tem um cargo como ele está prestes a ganhar só pode ser julgado por crimes praticados no seu mandato.

Além disso, também graças aos 2/3 da Câmara é ele quem vai eleger o próximo presidente da Casa, ampliando mais ainda seu poder.

É dele e não do povo brasileiro que, a partir de ontem, emana todo o poder.


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