Porque Paulinho da Força foi tão desprezível quanto Jair Bolsonaro

O deputado federal Paulinho da Força (SD-SP) participa de protesto realizado em 13 de março de 2016 na Avenida Paulista. Um ano antes, no mesmo local, foi expulso sob gritos de "oportunista" e "1, 2, 3, 4, 5, mil, queremos que Paulinho vá para a PQP!". Foto: Reprodução / Facebook
O deputado federal Paulinho da Força (SD-SP) participa de protesto realizado em 13 de março de 2016 na Avenida Paulista. Um ano antes, no mesmo local, foi expulso sob gritos de “oportunista” e “1, 2, 3, 4, 5, mil, queremos que Paulinho vá para a PQP!”. Foto: Reprodução / Facebook

No show de horrores que foi a votação da admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados no último domingo (17), alguns discursos conferem desde já o status de históricos, na pior acepção do adjetivo.

Caso da fala de Jair Bolsonaro, recém-convertido ao Partido Social Cristão do Rio de Janeiro, que, ignorando o ensinamento cristão de compaixão, dedicou seu voto à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos capitães do mato do general Emílio Garrastazu Médici, que foi responsável direto pelas torturas da presidenta – “O pavor de Dilma”, provocou Bolsonaro – e do assassinato de ao menos 45 vítimas, entre setembro de 1970 e janeiro de 1974, período em que dirigiu o Doi-Codi, o temido Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna.

Menos direto do que o de Bolsonaro, mas não menos abjeto, o discurso do deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força, líder do Partido Solidariedade, também entra para os anais da história como afronta grotesca à memória de mortos, torturados e exilados durante os 21 anos do regime de exceção imposto a partir de 31 de março de 1964. Em tom de deboche, se apropriou da melodia do refrão de Caminhando (Para Não Dizer Que Não Falei das Flores), o hino contra a ditadura escrito por Geraldo Vandré, para, fora de tom e desprovido de bom senso, cantarolar a infeliz paródia: “Dilma, vai embora que o Brasil não quer você. E leve o Lula junto e os vagabundos do PT”.

Nasci no auge da ditadura Médici. Geraldo Vandré e Caminhando são, para mim, desde a mais tenra infância, símbolos desse período sombrio. Quando criança, ouvi histórias assombrosas sobre o que fizeram com Vandré. A primeira versão, contada por meu pai, João, assegurava que ele tinha sofrido lobotomia para minar de sua cabeça o discurso combativo contra os militares. Em outra narrativa, que ouvi de vários interlocutores, ele teria sido emasculado. Recluso há décadas e, infelizmente, silenciado até mesmo em seu canto, o compositor paraibano sempre evitou o assunto. Recentemente duas boas biografias tentaram decifrar o enigma Geraldo Vandré, mas a verdade dos dias tenebrosos em que ele foi acossado pela ditadura provavelmente irá com ele para o túmulo.

Paulinho da Farsa, corruptela adotada por muitos dos que conhecem os desvios de ética de sua trajetória política (veja a ficha do deputado no site Transparência Brasil), no entanto, nem sequer esperou Vandré partir para usurpar a melodia do refrão de sua mais célebre composição como forma de legitimar um novo golpe à democracia, baita contrassenso. Nascido em 1956, o ex-sindicalista talvez não tenha testemunhado o momento em que parte significativa dos compositores de música popular do Brasil fez da dupla violão e voz uma das armas mais efetivas do combate à ditadura. Caso de Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Nara Leão, Gilberto Gil, Edu Lobo, Marcos Valle, Taiguara e Geraldo Vandré.

Em entrevista à Brasileiros, publicada na edição 51, de outubro de 2011, Marcos Valle explicou como se deu sua transição da bossa nova para a canção de protesto, manifestada em canções como Terra de Ninguém, que versa sobre a reforma agrária:  “Quando lancei meu primeiro álbum, Samba Demais, em 1963, vivíamos os últimos dias de Brasil democrático, ainda havia aquele espírito de um Brasil moderno, herdado do Juscelino, e a expectativa de transformações ainda maiores com o Jango. Tudo acontecia de bonito no cinema, no teatro, na música, e eu, tipicamente bossa nova, só falava de coisas boas, do amor, da natureza, aquele espírito contemplativo, só que chegamos a 1964 e tudo isso mudou completamente. Quando veio a ditadura, começou a haver uma obrigação de posicionamento, porque o momento exigia isso, nossa liberdade estava cerceada e a gente tinha, de alguma maneira, que combater aquilo tudo. No início, isso se tornou um grande problema para mim, pois havia uma espécie de obrigação e quem não assumisse uma posição era tachado de alienado. Começou a haver certa divisão entre alienados – Menescal, Tom e outros ligados a bossa, que eram mais líricos – e outros compositores – Edu Lobo, Ruy Guerra, Geraldo Vandré – que eram os participantes, havia até o termo ‘canção de participação’. Essa divisão, e essa quase obrigação, fez a gente escrever A Resposta. Por que tem que se cantar a miséria? O povo já sofre com a fome e a gente ainda vai fazê-lo cantar a fome? O cara vive em frente ao mar, de costas para o morro, e vai ficar falando do morro? Quando passamos a frequentar encontros de artistas – não só de música, mas de teatro e de cinema – e entendemos a gravidade do momento, eu e Paulo Sergio (letrista e co-autor da maioria das composições do irmão) realmente concordamos com a necessidade de dizer tudo aquilo. Começavam a surgir as primeiras histórias de tortura, de desaparecimentos e de mortes, e não dava para ficar indiferente.”   

Diferentemente de Marcos Valle e seu xará Paulo Sergio, Paulinho da Farsa (me permitam) parece ignorar o peso histórico que sua decisão terá em um futuro breve. Paulo Pereira da Silva será lembrado por, entre outas façanhas antidemocráticas, ter jogado combustível na fogueira quando, no primeiro grande protesto pro-impeachment, ocorrido em 15 março de 2015, na Avenida Paulista, em São Paulo, disponibilizou três caminhões de som da Força Sindical. Ironicamente, nem mesmo os manifestantes contra a corrupção, ironicamente vestidos com suas camisetas da CBF, a mais corrupta entidade desportiva do País, toleraram a presença do farsante. Assim que colocou os pés sob o palco improvisado no teto de um dos três caminhões e abriu o microfone, Paulinho foi expulso do protesto, sob vaias irascíveis, gritos de oportunista e o coro “Um, dois, três, quatro, cinco mil: queremos que o Paulinho vá pra PQP!”. Detalhe, ao lado do deputado, que se projeta como bastião da ética, estava o craque Ronaldo, o “Fenômeno”, vestindo camiseta com a frase “A culpa não foi minha. Eu votei no Aécio”. 

Com o perdão da intempestividade, como Bolsonaro, que tripudiou a memória das vítimas da ditadura ao dedicar seu voto ao carrasco Brilhante Ustra, Paulinho, que fez o mesmo, de forma mais branda, também merecia uma boa cusparada. Jean Wyllys, fica a dica.

MAIS

Ouça a apresentação histórica de Geraldo Vandré no Festival Internacional da Canção de 1968. Defendendo Caminhando (Para Não Dizer Que Não Falei das Flores), Vandré ficou em segundo lugar no festival –atrás de Chico Buarque e Tom Jobim, vencedores com Sabiá – fato que causou enfureceu o público jovem que, desde então, interpretava Caminhando como um hino contra a ditadura.     

Ouça Terra de Ninguém, composição de Marcos e Paulo Sergio Valle em defesa da reforma agrária 

  


Comments

Uma resposta para “Porque Paulinho da Força foi tão desprezível quanto Jair Bolsonaro”

  1. Avatar de Carlos Jorge Martins
    Carlos Jorge Martins

    Uma vergonha ele usar o nome Solidariedade.

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