[61 de 100] A difícil travessia da adolescência, segundo J. D. Salinger

coluna61Um bom número de leitores costuma se decepcionar com a história de “O Apanhador no Campo de Centeio” – mais apropriadamente chamado em Portugal como “Uma Agulha no Palheiro” –, do escritor americano J. D. Salinger (1919-2010). Acham o livro morno, sem momentos de clímax e que lhe falta um final arrebatador. Pensam assim principalmente quem faz parte das últimas gerações, acostumadas à velocidade dos videogames, à Internet e aos filmes de ação, mas que se sentem instigadas a ler a história pelo fato de o assassino de John Lennon (1940-1980), Mark David Chapman, ao ser preso, carregar consigo um exemplar – a obra o teria inspirado a matar o ex-Beatle. O mesmo aconteceu com o atirador que tentou assassinar o presidente americano Ronald Reagan (1911-2004), em 30 de abril de 1981. O matador da atriz Rebecca Schaeffer (1967-1989), Roberto John Bardo, trazia o livro quando tirou sua vida. Uma pergunta que surge de imediato é: afinal, o que poderia haver nesse romance capaz de gerar tanta violência? À primeira vista, nada.

O romance conta a história de um fim de semana na vida de Holden Caulfield, um adolescente que tem dezesseis anos e é filho de família abastada de Nova Iorque. Tudo se passa entre uma sexta-feira e um domingo. Caulfield vive um mau momento como estudante de um caríssimo e reputado internato para rapazes, o Colégio Pencey Prep, em Angerstown, que fica no estado da Pensilvânia. Ele agora tem de enfrentar as consequências de voltar para casa depois de receber as más notas na maioria das matérias e informar aos pais que, por causa do seu péssimo rendimento, acabara de ser expulso do colégio. Enquanto arruma suas coisas, ele relembra a relação com professores e colegas e faz críticas eles, pois os considera superficiais e até mesmo “falsos”, termo usado por ele. Sem esperar pelo formalismo da punição, prevista para a segunda seguinte, o rapaz se precipita em deixar a escola e parte no meio da noite, depois de brigar com seu colega de quarto, Ward Stradlater. Chateado, embarca no trem para a cidade de Nova Iorque, onde decide se hospedar decadente Hotel Edmont, enquanto se prepara para enfrentar os pais. Ao invés de entrar em desespero, passa a questionar tudo à sua volta. 

Caulfield está longe de ser o garoto exemplar que lhe cobram a família e as convenções sociais que o cercam. E ele se deixa “perder” na maior cidade americana, enquanto reflete sobre a sua curta vida. Assim, o leitor se depara com uma peculiar visão de mundo e sua tentativa quase desesperada, porém corajosa, de definir alguma diretriz para seu futuro. Entre suas andanças, ele procura algumas pessoas que considera importantes, como um professor, uma antiga namorada e sua irmãzinha. Nos diálogos entre eles, o jovem tenta explicar e, ao mesmo tempo entender, a confusão que passa pela sua cabeça. Durante a noite de sábado, ele dança com três jovens turistas. Em seguida, tem um malsucedido encontro com a prostituta Sunny – o fato de perceber que ela tem a mesma idade sua lhe causa certo desconforto. E diz a ela que tudo o que quer é conversar, o que a irrita e a faz ir embora, depois de receber pelo programa não feito. Mais tarde, a moça e seu cafetão voltam ao quarto de Caulfield para extorquir mais dinheiro. Maurice dá-lhe um soco no estômago e Sunny aproveita para tirar cinco dólares da carteira do rapaz. E a história prossegue, com outras situações desfavoráveis ou tensas em relação ao protagonista, e momentos intensos de muita bebedeira e solidão. 

Salinger fez sim um livro lento, sem dúvida. Mas poderoso em seu conteúdo transgressor para a época em que foi lançado. O escritor prima pela sutileza, pelo estilo ameno de narrar uma história aparentemente banal, que termina sem qualquer situação de impacto. Finda a história. Não há vida para seu jovem protagonista, para quem tudo está apenas começando. A intenção do escritor foi se fazer entender dessa forma. Seu romance pode ser visto como trama que parece vir de lugar nenhum para chegar a nenhum lugar. As aparências enganam, nesse caso. E muito. “O Apanhador no Campo de Centeio” não é um livro envelhecido ou datado. Nem é somente o retrato de uma geração angustiada que ficou no passado. Seu texto permanece como um convite à libertação e à liberdade, atualíssimo, embora ambientado quando o mundo vivia a angústia de ser destruído por uma guerra de bombas atômicas entre Estados Unidos e União Soviética. Caulfield se tornou o porta-voz de rapazes e moças, expressa suas aflições e desejos dentro de uma sociedade com regras rigidamente estabelecidas, focadas na luta contra o comunismo. Ao relatar as próprias vivências durante os tempos de escola e viver uma experiência intensa ao ir para casa, o adolescente externa o que se passa em sua cabeça, as considerações sobre seus pais, professores e amigos. Exatamente assim acontecia a milhões de garotos na sua faixa etária por todo o mundo. 

 “O Apanhador no Campo de Centeio” foi publicado pela primeira vez em formato de texto para revista, entre 1945-1946. Só em 1951, saiu editado como livro, com capa dura, voltado para adultos, e, imediatamente, transformado em sucesso de vendas. Não demorou a atrair jovens leitores por tratar de temas tipicamente adolescentes como confusão na escola, angústia, briga com os pais, alienação, linguagem e rebelião – características que fizeram de Holden Caulfield ícone da rebelião adolescente nos anos de 1960 e 1980. Foi traduzido para quase todas as principais línguas do mundo e cerca de 250 mil exemplares são vendidos todo ano – estima-se que mais de 65 milhões de cópias já foram comercializadas. O livro entrou na lista dos 100 melhores romances da língua inglesa escritos desde 1923, segundo a equipe da revista “Times”, publicada em 2005. Também foi selecionado pela Modern Library e seus leitores como um dos 100 melhores livros da língua inglesa do século XX. Mesmo assim, a obra de Salinger é até hoje frequentemente censurada nos Estados Unidos e em outros países, nas passagens que existe certo “uso liberal” de palavras de baixo calão e por mostrar um retrato de sexualidade e explorar dilemas adolescentes. 

O escritor poderia ter aproveitado ao máximo toda a notoriedade que o livro lhe deu. Ao contrário, no entanto, Salinger escolheu outro caminho, o do silêncio, da reclusão e da solidão. Viveu isolado por mais de meio século, longe de tudo e de todos, em um pequeno sítio. Também diminuiu seu ritmo de produção de textos até passar boa parte da vida sem publicar nada. Os três livros que se seguiram a “O Apanhador no Campo de Centeio” foram “Nove Histórias”, de 1953, que reúne nove contos publicados na revista “The New Yorker”, entre 1948 e 1953; “Franny & Zooey”, de 1961, com duas novelas curtas que dão nome ao livro; e “Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira” e “Seymour, uma Introdução”, de 1963, com duas novelas de Salinger. Todos têm em comum o fato de trazerem como personagens principais membros da Família Glass, constituída por Buddy (espécie de alter-ego do escritor), Seymour, Boo Boo, Walt, Waker, Franny e Zooey Glass, todos irmãos. Seu último trabalho publicado foi a novela intitulada “Hapworth 16, 1924”, que apareceu na revista “The New Yorker”, edição de 19 de junho de 1965. 

O protagonista de “O Apanhador no Campo de Centeio” é um típico herói romântico, que possui senso de justiça e correção, o que faz dele um personagem cativante e inesquecível. Sem sensacionalismo, Salinger lida com questões complexas de identidade, solidão, conexão e alienação. E, desse modo, ele criou o que se chamou depois de cultura-jovem. Afinal, na época em que foi escrito, a adolescência era apenas considerada uma passagem entre a juventude e a fase adulta, que não tinha importância o suficiente para ser levada a sério pelos pais. Seu livro mostrou o valor da adolescência e como os adolescentes pensam.  Pena que continue a ser tão mal compreendido, principalmente por loucos com ideias homicidas na cabeça.


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