[96 de 100] Os outros realismos possíveis, segundo Adolfo Bioy Casares

coluna96O primeiro e mais famoso romance do escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), “A Máquina Fantástica” – mais conhecido como “A Invenção de Morel” –, foi lançado quando ele tinha apenas 26 anos, em 1940. O pequeno volume já trazia um estilo não exatamente acabado, mas definido do autor: o de um genial inventor de mundos, marcados por um realismo de verossimilhança hiper-realista, porém regidos por uma lógica peculiar, segundo ressaltam seus estudiosos. Na apresentação de uma edição posterior, o compatriota, amigo e parceiro Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveu que ele, nesse livro, elaborou o que se poderia chamar de a “obra perfeita”. Segundo Borges, Bioy Casares “desenvolve uma odisseia de prodígios que não parecem admitir outra clave a não ser a da alucinação ou a do símbolo, e decifra-os plenamente, mediante um único postulado fantástico, mas não sobrenatural”. Depois, acrescenta: “O temor de incorrer em revelações prematuras ou parciais impede-me de examinar aqui o argumento e as muitas sutilezas da execução”.

A trama gira em torno de um venezuelano condenado à prisão perpétua por um crime político que ele não cometeu. Em forma de diário, ele conta que, com a ajuda de um amigo italiano, fugiu para uma ilha no Oceano Pacífico, um lugar ermo, sem comunicação com o resto do mundo, onde, muitos anos antes, em 1924, um milionário excêntrico construíra uma capela, um hotel-museu e uma piscina, que se encontravam abandonados e em ruínas quando ali chegou. Havia também no local estranhas máquinas, que fascinam o intruso. Sem destino, ele passou a viver no hotel e descobriu que a ilha fora mantida isolada por causa de uma lenda de que estava contaminada pelo vírus de uma misteriosa moléstia que “mata de fora para dentro”. A epidemia desconhecida ameaçava com morte terrível quem pisasse em terra firme, acreditava-se. Mesmo sem qualquer indício de haver no local uma pista de pouso de avião ou porto para desembarque de navio, estranhos apareceram na ilha.

Pareciam turistas em busca de diversão. O fugitivo pensou, no entanto, que aquelas pessoas estavam ali para prendê-lo e se escondeu em uma área pantanosa da ilha. Ao mesmo tempo em que tentava sobreviver a marés perigosas e inconstantes, e se alimentando de bulbos e raízes, ele passou a observar de longe os movimentos dos intrusos. Chamaram sua atenção um homem de nome Morel e uma mulher de aparência cigana, Faustine, por quem se apaixonou perdidamente, só que à distância, de modo platônico. Ela se tornou o seu centro de atenção, mesmo que todos os intrusos o ignorem completamente, como se ele não existisse. Isso se deu por um bom tempo. Eles passeavam, dançavam, ouviam música. Faziam festa o tempo todo, sem qualquer sinal de que seriam uma ameaça ou tinham interesse em pegá-lo. O rapaz tenta manter contato com a amada – inicialmente, chegou a plantar um jardim inteiro com uma mensagem para ela, que continuou a ignorar sua existência. Esse é o mistério que vai intrigar o leitor cada vez mais.

Enquanto a história se desenrolava, o fugitivo relatava suas dificuldades, as doenças que o acometeram etc. Enfim, sua luta para se manter vivo na condição de procurado e, agora, encurralado. Além das experiências factuais, descreveu também seu estado emocional, o que, de certo modo, confunde quem lê, ao estabelecer dúvidas se tudo aquilo era, de fato, real, ou se tantos acontecimentos absurdos não passavam de delírios ou loucura do narrador, provocados por tanto tempo de fuga e solidão. O livro começa com breve descrição de como ele fora parar na ilha e explicação do porquê de escrever o relato. Alegou que sua sobrevivência seria um verdadeiro milagre já que vivia sob condições muito adversas e que gostaria de deixar um testemunho desse milagre. Em seguida, começou a dar pistas sobre o realismo fantástico buscado pelo autor, uma vez que não conseguia determinar também o fato de nenhum dos visitantes da ilha conseguir vê-lo. Concluiu que era completamente invisível aos olhos de qualquer pessoa da ilha, mas os animais ainda o sentiam.

A crítica e seus biógrafos destacaram que ele fez, em “A Máquina Fantástica”, uso de imagens durante toda a narrativa e seu caráter é bastante descritivo. O clímax da história apareceu no momento em que os personagens jantavam no museu, enquanto eram observados sorrateiramente pelo protagonista. Nesse momento, compreende-se o título do livro e seu significado. Morel parou o jantar para dar a todos uma grande notícia: a construção de uma máquina capaz de eternizar o tempo. Portanto, aquele era um momento de grande celebração. Também revelou a verdade sobre a ilha, sobre a semana em que ele e seus amigos haviam passado lá, por causa de sua engenhosa invenção. Não seria justo aqui revelar também porque não havia comunicação com o fugitivo. Estavam eles em realidades alternativas? Em estado físico alterando? Tudo não passara de loucura da mente do fugitivo? E, por fim, tudo se explica de modo fascinante: havia sim algum sentido em dizer que na Ilha a tal moléstia matava de “fora para dentro”.

Ao se ler “A Máquina Fantástica”, é difícil não se lembrar de “A Ilha do Dr. Moreau”, romance de H.G. Wells (1866-1946), sua segunda obra de ficção científica, depois de “A Máquina do Tempo”. Foi publicada no mesmo ano em que Wells completava 30 anos, em 1896. O romance argentino veio mais de quatro décadas depois. Na verdade, a semelhança está quase exclusivamente no ambiente e na ideia de se alterar a realidade a partir da obsessão humana pelas ciências. Bioy Casares ganhou independência, porém, quando se nota que seu personagem lutava para entender por que tudo parecia se repetir, todas as situações e movimentos, feitos com uma máquina especial que era capaz de gravar não só imagens tridimensionais, mas vozes e aromas etc. A história misturava realismo, fantasia, ficção científica e terror. O que adveio daí é algo absolutamente fantástico, uma das mais belas e criativas invenções literárias de todos os tempos. E que faz pensar: o próprio livro seria uma máquina fantástica do ponto de vista da criação imaginativa. Não por acaso, portanto, o romance é considerado por muitos especialistas como uma das melhores peças de ficção fantástica de todos os tempos.

Bioy Casares completaria 100 anos de idade em 15 de setembro de 2014. Faleceu aos 85 anos, com uma sólida e consagrada carreira como escritor de ficção, jornalista e tradutor. Ele era um amigo e colaborador frequente de Borges. Juntos, assinaram inúmeros contos sob o pseudônimo de H. Bustos Domecq. Ao contrário do amigo, ele nasceu em uma família abastada, em Buenos Aires. Era neto de um rico fazendeiro e produtor de leite, além de descendente de Patrick Lynch, emigrante irlandês bem sucedido. Escreveu seu primeiro conto, “Iris y Margarita”, quando tinha apenas onze anos de idade. O fortato seria a sua marca registrada. Com 15 anos, reuniu suas primeiras histórias no livro com o título sugestivo de “Prólogo” (1929). Quatro anos depois, saiu “17 disparos Contra el Porvenir” (1933). Em 1936, lançou “La Estatua Casera”, também de contos. Ao longo da vida, publicaria quase três dezenas de livros: sete romances, treze volumes de contos e um de cartas. Com Borges, assinou seis títulos.

Considerado um romance metafísico, cujo propósito é fazer uma dura crítica à tecnologia moderna – não se deve esquecer que o livro saiu durante a Segunda Guerra Mundial, quando era intensa a corrida por soluções que ajudassem na vitória do conflito –, o texto de Bioy Casares poderia, ao final, ser considerado uma bela história de amor. Daquelas idealizadas em que não há limites para vivê-la intensamente. Assim como toda a sua literatura, foi celebrada inicialmente pela crítica argentina e até por contemporâneos importantes das letras, como Julio Cortázar (1914-1984), além de Borges. A história serviu como argumento para diversos filmes e faz parte da vasta obra que rendeu ao autor prêmios internacionais como a Légion d’Honneur da França (1981) e o Cervantes (1991). 


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