Foto: FMagalhães
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                                                                            um bom poema

                                                                            leva anos

                                                                            cinco jogando bola,

                                                                            mais cinco estudando sânscrito,

                                                                            seis carregando pedra,

                                                                            nove namorando a vizinha,

                                                                            sete levando porrada,

                                                                            quatro andando sozinho,

                                                                            três mudando de cidade,

                                                                            dez trocando de assunto,

                                                                            uma eternidade, eu e você,

                                                                            caminhando junto

O poema de Paulo Leminski serve de inspiração para ordenarmos algumas ideias sobre a infância. Mais especificamente, sobre os preciosos 3 primeiros anos de vida.

Os dois pilares dessa reflexão são:

1 – É fundamental desconfiarmos que talvez “o mais profundo seja a pele” (*), que os acontecimentos da vida frequentam a sua superfície. A criança vive plenamente a descoberta, a cada instante, das novidades da existência, plasmando e sendo plasmada nas circunstâncias que a envolvem e nas profundidades que a constituem, indissociáveis umas das outras.

2 –  Os encontros com o outro, os percursos compartilhados, seja com o seio da mãe, nas relações primais, seja o amor das relações sexualizadas adultas ou com o  professor na escola, são alicerces e por isso imprescindíveis para a saúde e desenvolvimento da personalidade. Até os desencontros não passam, na realidade, de encontros com desejos não realizados, carregados de frustração.

Essas duas ideias estão no poema. Estão também numa extensa bibliografia psicanalítica e filosófica. Melanie Klein, D.W.Winnicott e Oswaldo di Loreto, há muito tempo, chamam a atenção dos psicólogos e outros clínicos da infância para a importância dos três primeiros anos do desenvolvimento.

Desde o nascimento, a criança vai confeccionando seu repertório a partir da memória afetiva de acontecimentos vividos, verdadeiros moldes de afetos que irão ser reeditados, conforme o tempo e o espaço, durante toda a vida. O encontro com a mãe, ou mais precisamente, com o seu seio, é fundamental em termos de importância afetiva. A mãe alimenta o filho com seu próprio corpo, como já vinha fazendo durante os nove meses da gestação. O filhote humano, dentre os mamíferos, é o que por mais tempo dependente dessa relação. O calor, a sensação táctil, o cheiro, o gosto do colostro, futuro leite, são estímulos primordiais e constitutivos da vida psíquica.

Árdua tarefa é a construção da identidade, da autonomia, a partir de uma situação de absoluta dependência. Processo inesgotável durante toda a vida, mas que tem na primeira infância e mais tarde, na adolescência, períodos onde as transformações são tão velozes quanto intensas.

O adolescente é Alice no País das Maravilhas, esticando-se e encolhendo-se, passando através dos espelhos, um movimento frenético na busca de si mesmo, a sua real medida. Adolescer é ousar, experimentar, esse sublime jogo da construção dos próprios limites. O jogo com a lei e sua transgressão faz parte do processo, tanto quanto as espinhas na cara ou as paixões em estado bruto. É fundamental para a estruturação dos seus próprios limites o questionamento dos limites que lhe são impostos “de fora”, e isso não tem nada a ver com delinquência ou psicopatia.

Nas sociedades ditas primitivas a transformação de uma fase à outra da vida é fortemente ritualizada: o menino fica restrito à sombra das ocas até aprender a lutar como um guerreiro, a pescar, a esculpir um remo e manejar o arco e a flecha. Ritos de passagem que o jovem da nossa sociedade não dispõe de maneira tão marcada. O coletivo, o social, não lhe oferece uma rede de suporte que sinalize essa intensa travessia; muito pelo contrário, estamos rodeados de adultos que como modelos de identificação exercem perversa influência, de um político corrupto a um traficante da bocada.

É fácil imaginar o tamanho das dores que podem surgir de situações vividas de violência, abandono e privações. É consenso, dentre os clínicos, que quanto mais precoces os problemas, mais graves serão os distúrbios, se aparecerem.

Felizmente a vida é plástica, cada indivíduo é absolutamente singular. Infinitas são as possibilidades de elaboração dos conflitos, como expressa aquele ícone existencialista:  O mais importante não é aquilo que fazem com o homem, mas aquilo que o homem faz com o que fazem com ele.

Nos últimos vinte anos, venho convivendo diariamente com crianças e jovens privados das condições básicas para a vida com dignidade,  ajudando uns a afirmarem sua criatividade e crescimento; outros a amenizarem sua dor, com mutilações físicas e psíquicas que os abandonos sucessivos e a vida nas ruas lhes impuseram; outros ainda, vendo serem seduzidos pelas ofertas que o crime lhes faz, vulneráveis que estão por não lhes serem honestamente apresentados reais e interessantes alternativas, com qualidade em saúde, educação, lazer… A adrenalina das correrias passam a ser a opção,  engordando as estatísticas do IML ou da Fundação Casa.

Meio clínico, meio educador, tenho aprendido e ensinado que as crianças que vivem nas ruas são crianças tristes. Que a tristeza na criança e a violência que a juventude sofre e reproduz são os dois principais sintomas da nossa grave doença social. Delatam a falência de um modelo, de um paradigma.

Que nova clínica e que nova pedagogia precisamos reinventar para que a complexidade da situação não seja negada e sim acolhida?

O ser humano nasce programado para aprender e este aprendizado só se dá na sua relação com outro ser humano.

Uma das possibilidades de interpretação para a origem etimológica da palavra educar é aquela que compreende o encontro significativo entre dois sujeitos, um tem o privilégio e a responsabilidade de despertar no outro a sensação gustativa do doce.

Essa é a moral da história: Educar é um ato de amor. E tem gosto de chocolate.

(*) Verso de Paul Valéry.


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