Um equilíbrio delicado

*Por Daniela Gillone

 

Canção da Volta é um filme em que o suicídio e a obsessão, vivenciados nas relações íntimas de um casal, são postos em um contexto que provoca o espectador a ir além de seus motivos mais aparentes para entender a trama. A atração da protagonista pela morte e a angústia do marido em busca de um mínimo de controle em meio a essa situação nos conduzem a questões mais complexas.

Júlia passou por uma tentativa de suicídio sem que se esclareça o que a levou a isso. Seus arquivos pessoais, fotografias, cartas e e-mails, vasculhados por Eduardo (o marido, muito bem interpretado por João Miguel), não chegam a revelar nada, nem sequer um passado suspeito. Assim, as buscas por uma explicação do comportamento suicida da mulher vão construindo um mistério existencial. A pulsão autodestrutiva de Júlia fica, como num bom drama psicológico, sem moldura, uma presença fantasmática, solta na atmosfera sombria que envolve os personagens.

O filme escapa da armadilha de se concentrar demais no tema do suicídio, um tema ainda tabu e de certa forma ingrato, e acerta na maneira como mostra sua repercussão entre o marido e os filhos. Outro achado do longa é a narrativa alusiva e fragmentada, que gera tensão e intensidade pouco comuns neste tipo de filme. Além disso, trabalham-se os personagens numa dimensão menos dicotômica: Júlia, depressiva, passa a ter momentos de felicidade, ao passo que Eduardo, de compreensivo, se torna controlador. Do ver aparente passamos à revelação do outro em seu caráter enigmático e fragmentário.

No sentido de romper com a linearidade previsível colabora o som. Os ruídos e as conversas desarticuladas estabelecem padrões que se repetem. Há momentos de silêncio, outros de sons ensurdecedores. As falas, quase inaudíveis em telefones celulares, por exemplo, voltam nos momentos em que Eduardo conduz o carro pelas ruas do centro da cidade de São Paulo à procura de Júlia. As imagens também reincidem e ressignificam a ausência da mulher. A câmera é insistente nessa elaboração, principalmente no trajeto do marido pela avenida Doutor Arnaldo, em frente ao cemitério, onde se tem em primeiro plano o encosto do banco de passageiro vazio no carro em movimento.

Há um vaivém na reiteração da iminência de morte e na afirmação de uma obsessão de controle do homem sobre a mulher. A narrativa nos encaminha a experiência de ver os limites da angústia e dos relacionamentos.  No final, a estrada, vista dos assentos de trás do carro do casal, parece deixar o passado se diluir na forte neblina. É o prenúncio de um mergulho no mar, um mar sob um céu cinzento, longe do clichê ensolarado e apaziguador. Belo filme que trata de maneira inusitada e com bastante sutileza as angústias da existência, pouco comum no cinema brasileiro.

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