Cancioneiro de Petrarca

(Trecho da Canção 1)*

“Digo então que, até o dia em que Amor
me assaltou, muito tempo era passado,
pois não mais tinha o juvenil aspecto;
meu coração estava ainda gelado
e tinha um duro esmalte ao seu redor,
que não deixava entrar nenhum afeto;
lágrima alguma me banhava o peito
nem tirava o sono, e o que eu não sentia
parecia-me nos outros um portento.
O que fui não lamento!
Louva a vida no fim e à noite o dia.
Bem, vendo o cruel de quem falo vir,
o que com flecha inda não me atingira,
nem me tinha passado além da veste
vi na escolta uma mulher inconteste
contra quem não valeu nem vale a ira,
o engenho ou força, ou pedir perdão.
Os dois me transformaram a feição
fazendo de homem vivo um louro verde
que na fria estação folha não perde.

Eis como estava eu, ao me aperceber
da transfigurada minha pessoa:
o cabelo vi ficar daquela fronde
de que esperava já uma coroa,
e os pés de se pisar, andar, correr
(como é do membro que à alma responda)
feitos duas raízes por sobre a onda
não do Peneu, mais forte era a corrente,
e em dois ramos mudarem-se meus braços!
Tremendo lembro traços
de ver-me de alvas plumas de repente,
assim que fulminado e morto tombou
meu esperar, que alto demais buscava.
Então, sem saber onde nem quando
recuperar, sozinho e chorando,
o que perdi, noite e dia procurava
do lado e dentro da água onde ficou;
depois disso minha língua não calou,
enquanto pude, essa queda infeliz;
e do canto tomei a cor do cisne.”

*Neste poema de extensão variável, que publicamos agora em primeira mão, Francesco Petrarca (1304-1374) narra as transformações que sofreu com os assaltos do Amor quando viu Laura pela primeira vez. O livro, com nova e cuidadosa tradução, feita ao longo de cinco anos, será lançado em novembro pela Ateliê Editorial, em parceira com a Editora da Unicamp.


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