Resistência à censura

o escritor e dramaturgo santista Plínio Marcos, um dos autores que tiveram trabalhos censurados durante o período militar. Foto: Reprodução / Youtube
O escritor e dramaturgo santista Plínio Marcos, um dos autores que tiveram trabalhos censurados durante a ditadura. Foto: Reprodução / Youtube

Os ensaios reunidos no recém-lançado Livros e Subversão: Seis Estudos (Ateliê Editorial, 176 páginas) abordam o papel de jornalistas, intelectuais e editores que se posicionaram contra os abusos do regime militar, que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Organizado pela filósofa Sandra Reimão, livre-docente da Universidade de São Paulo, trata-se de material indispensável para que se lance um olhar novo e balizado, frente às variadas formas de interdição duramente impostas no período ditatorial.

Nestas, teve papel central o tentacular SNI (Serviço Nacional de Inteligência) que importou métodos de censura, vigilância e repressão, replicando-os com máxima eficiência e desmedido rigor contra os suspeitos de cultivar outra concepção de mundo, cujos rastros envolvessem a simpatia ao comunismo e o consumo de materiais de caráter tido por “subversivo”.

Livros e Subversão disseca esta e outras instituições que avalizaram a atuação repressiva dos agentes da suposta ordem, a cargo de um regime atrelado à política intervencionista estadunidense e amparado, cultural, social e politicamente, por acepções paradoxais de liberdade, democracia e patriotismo.

Vejamos. Atrelado ao SNI estavam as numerosas unidades locais do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que efetuava as diligências, inquéritos, torturas e prisões. Vigilância e repressão eram contrapartes dos atos adotados por um punhado de homens sádicos e ambivalentes que alvejavam o perigo vermelho, mas não viam problemas na miséria social que grassava no País.

Quase ninguém escapava às lentes míopes do poderio militar. Zuenir Ventura foi monitorado por importar onze livros de conteúdo “suspeito” da França, e também por entrevistar Chico Buarque durante um programa televisivo em que discutiram (que ironia) justamente aspectos da cultura popular brasileira.

Autor do ensaio de abertura, as pesquisas empreendidas por Felipe Quintino no DOPS e no APERJ (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro) revelaram que:

O nome dele foi grafado de maneiras diferentes. As formas Zoany, Zueno, Zoenir e Zwenir apareceram nos documentos (muitos deles sigilosos), além da grafia correta Zuenir. As primeiras menções ao nome do jornalista fazem parte de uma listagem, de maio de 1964, pouco tempo depois do golpe militar. Trata-se do informe número 1069 (secreto), em que o Serviço Federal de Informações e Contrainformações (SFICI) (p. 18).

E o que dizer sobre o empreendimento de Luiz Alves Júnior e Raimundo Nonato Rios, a Global Editora, que adotara uma postura mais engajada a partir de 1977? O fato é que, graças à guinada de direção – do apelo popular ao embate ideológico – a casa assistiu à censura a diversos autores e obras, severamente perseguidos pelo regime, dentre eles o célebre dramaturgo Plínio Marcos.

Por sua vez, as entrevistas colhidas por Flamarion Maués revelam outros dados muito interessantes, dentre os quais as estratégias para distribuição de livros de alcance maciço, editados em grandes tiragens. Durante alguns anos, eles foram publicados às dezenas (nesses moldes) pela Global, pelo menos até 1976:

O Submundo da Sociedade teve uma primeira edição de vinte mil, depois veio Kung Fu, era época do Kung Fu, vinte mil, faroeste, policial sexy, todos esses com selo Global e edições de vinte mil. A Global nasceu para cumprir essa função, pensando em suprir necessidades do varejo muito maior do que o varejo convencional do livro, que seria as livrarias (p. 40).

O terceiro capítulo, assinado por Ana Caroline Castro, estabelece um contraponto exemplar aos desmandos do regime. Se 1970 foi o ano dos maiores índices de apreensão de livros no País, 1979 foi aquele em que o projeto Brasil Nunca Mais congregou diversos setores da sociedade, com forte atuação da Igreja, amparada pela consultoria de uma equipe de advogados. Livros instigam novas atitudes. De acordo com a autora, eles agiam:

Inspirados pelo trabalho de Michel Foucault em Vigiar e Punir, em que o autor analisou os registros judiciais dos séculos XVIII e XIX, na Europa, para reconstruir a sistemática da repressão oficial do Estado, o projeto Brasil Nunca Mais reuniu advogados e religiosos, em 1979, em torno de um objetivo semelhante. Para tanto, obtiveram a cópia da quase totalidade dos processos políticos formados na Justiça Militar, em especial aos que chegaram à esfera do Superior Tribunal Militar (STM) (p. 68).

Atos coletivos corriam em paralelo com iniciativas heroicas, protagonizadas por homens praticamente isolados. É o que revela o ensaio de Andréa Lemos. De 1965 a 1968, a Revista Civilização Brasileira cumpriu um honroso papel, frente ao estado de coisas que vigorava no País.

O corajoso empreendimento de Ênio Silveira sofreu diversas intervenções, até o atentado à bomba deflagrado em 1968, sucedido pelo corte de verbas que sufocou a manutenção e sobrevida do periódico. É digno de nota que a proposta da revista estava assumidamente na contramão do senso comum, reinante no país àquela altura:

A RCB foi criada, dentro da perspectiva de Ênio Silveira, como um espaço composto fundamentalmente de proposições anti-imperialistas e de luta por um socialismo aberto. Podemos dizer que esta proposição teve reflexos na prática editorial. A questão de um “socialismo aberto” pode ser constatada pela publicação em editorial de uma edição especial da revista sobre a invasão da Tchecoslováquia pela URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), ocorrida em agosto de 1968 (p. 95).

Sem dúvida, um dos episódios mais marcantes, resgatados em Livros e subversão, encontra-se no penúltimo trabalho, escrito com as vozes de Sandra Reimão, Flamarion Maués e João Carlos Nery.

Em outubro de 1968, apenas dois meses antes de instituído o AI-5, a Diálogo Livraria e Editora publicava uma nova versão de O Estado e a Revolução de Lenin – que tinha por subtítulo o conceito marxista de poder -, provida com paratextos de José Nilo Tavares e Otto Maria Carpeaux. A tiragem de três mil exemplares mal deu conta dos pedidos feitos em todo o País.

As represálias não tardariam a se manifestar. Contudo, um fato tão ou mais impressionante é que a caça aos livros de teor considerado “subversivo” tenha perdurado ao longo de muitos anos, como assinalam os pesquisadores:

Em 1977, já nas fases finais da ditadura militar brasileira, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro publicou a obra intitulada Segurança Nacional e Subversão (Dicionário Teórico e Prático), de autoria do delegado de polícia Zonildo Castello Branco. A publicação visava facilitar “o trabalho dos policiais em exercício na Polícia Política – Autoridades e Agentes”, por ser uma “publicação para pronta consulta, cuidando de Segurança Nacional, Informações, Operações e Subversão”. No dicionário, o livro O Estado e a Revolução é apresentado como uma obra em que Lenin, “desenvolvera as ideias de Marx sobre o destino do Estado, após a vitória do proletariado” (p. 120-121).

No ensaio final, também assinado por Reimão, Maués e Nery, confirma-se o essencial papel da memória – esse imprescindível item de resistência aos horrores do regime ditatorial e sua consequente superação.

Passamos a saber que, entre fevereiro de 1967 e dezembro de 1968, funcionou a Banca da Cultura, sediada no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo, por iniciativa de uma associação de estudantes. Suas atividades foram interrompidas quando da violenta invasão e saque impetrados por tropas do II Exército, dias depois de proclamado o AI-5:

Em 17 de dezembro de 1968, quatro dias depois da decretação do Ato Institucional nº 5 – que marca o início do período mais violento da ditadura militar brasileira –, o Crusp foi invadido por forças do exército e seus moradores presos. Havia, à época, cerca de 1400 moradores no Crusp: as estimativas são de que entre oitocentos e mil estudantes foram presos. Depois da invasão militar e do esvaziamento de 1968, o Crusp só voltaria a ser usado novamente como moradia de estudantes de graduação mais dez anos depois, em 1979 (p. 153).

Como se vê, não eram episódios esporádicos e de efeitos imediatos; mas ações que persistiram na rancorosa memória dos militares durante muitos anos. A censura à palavra impressa recebia um tratamento análogo às penas impingidas às pessoas – ainda quando meramente suspeitas de apoiar o ideário da esquerda ou adotar quaisquer atitudes interpretadas como atos de resistência.

Os relatos que permeiam o livro evidenciam algumas das maiores contradições do regime. Em nome de um patriotismo postiço e de ocasião, repreendia-se severamente a influência da esquerda, mas sob o influxo, o apoio financeiro e a franca ingerência dos Estados Unidos.

No Brasil, veículos mais conservadores da imprensa amplificaram a voz das elites locais, em consonância com escusos interesses de ordem moral, religiosa, política e financeira.

Por sua vez, longe de se ater aos fatos e favorecer a reflexão, o discurso oficial embaralhava as noções de liberdade, democracia e nacionalismo, estabelecendo o intervencionismo norte-americano como antídoto contra o mal que, em tese, provinha de Cuba, sucursal da Europa comunista.  

Afora recuperar corajosos atos de resistência, frente às arbitrariedades do governo em nome da relativa ordem, do progresso pelo avesso e da falácia pseudocívica, Livros e subversão reúne importantes depoimentos, documentos e publicações que, além de ilustrar os capítulos, atribuem inegável consistência às teses defendidas pelos autores.

Em tempos de contramarchas; de discursos vociferados por seres que ignoram o verdadeiro significado das cores e formas de nossa bandeira; de atos questionáveis que estimulam as variadas formas de retrocesso social (em nome da pretensiosa moralidade geral), comemoremos o caráter, digamos, subversivo desse importante livro – ofertado ao grande público, sob o rigor e os cuidados da Ateliê Editorial.

*Professor de Cultura e Literatura Brasileira no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. E-mail: tupiano@usp.br


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