Impressões sobre uma eleição

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Cheguei aos Estados Unidos com mulher e filho mais novo há pouco mais de três meses, no dia 10 de agosto, para passar um ano como professor visitante em Harvard graças a uma bolsa da Capes e do David Rockefeller Center for Latin American Studies. Fazia um calor forte e seco na Nova Inglaterra e a campanha presidencial seguia também a todo vapor.

Recém-instalados, recebemos o convite para jantar na casa do chefe do Departamento de Antropologia, onde ensino. À mesa, também convidados, um casal israelense, ela professora da universidade. Ambiente cordial, casa linda, comida ótima e a conversa segue seu rumo inevitável para as eleições: todos preocupados com a possibilidade de Trump ganhar, apesar das pesquisas mostrarem uma vantagem confortável de Hillary. Voltei para casa encafifado: para mim, ele era uma galinha morta, ou seria esta mais uma história como as de Arnold Schwarzenegger (o “Governator”), Jesse Ventura (lutador de telecatch e governador de Minnesota), George W Bush ou Ronald Reagan?

As pessoas com quem conversava na rua indicavam que votariam na candidata democrata e isso era apoiado pelos constantes resultados de pesquisas de opinião. Nate Silver, famoso por suas previsões, atualiza regularmente seu blog com novos dados, todos eles indicando a vitória de Hillary. Tradicionais veículos de mídia escrita começam aos poucos a misturar suas coberturas com campanhas abertas a favor de Hillary, caso do The New York Times e da The New Yorker.

No próprio dia da eleição, como se sabe, o NYT dava cerca de 85% de chances de vitória para Hillary. Alguma coisa não fechava, no entanto: após os três debates, nos quais Trump foi aparentemente massacrado nos dois últimos, ele parecia reemergir cada vez mais forte. Eu desconfiava que muita gente que acabou elegendo Trump tinha vergonha de declarar suas intenções de voto.

Antes do segundo debate vazou a gravação, feita dentro de um ônibus há cerca de dez anos, na qual Trump narra ao jornalista Billy Bush suas façanhas de garanhão em uma linguagem chula e ofensiva. Tudo isso enquanto emergiam sinais claros de que Trump sistematicamente deixou de pagar impostos por anos a fio. Em algum momento em outubro, vejo, no The Guardian, que fez uma excelente cobertura, em vídeo gravado em um subúrbio da Filadéfia, em um bar onde se reuniam apoiadores de Trump para assistir ao segundo debate, um cidadão afirmar que também não paga impostos e não via nada de errado nisso.

Ao mesmo tempo, apesar do indisfarçável mau gosto e da agressividade do teor da conversa no ônibus, via muita gente dizer que aquilo era assunto particular, conversa entre dois homens e nada diferente das bobagens que homens costumam dizer uns aos outros para contar vantagem. Minha mulher e minhas amigas me garantiram, no entanto, que o voto feminino liquidaria o Trump.

Dos apoiadores de Trump ouvia um refrão tristemente familiar, repetido tantas vezes no Brasil dos últimos anos: “Quero meu país de volta”. À medida que o tempo passava e a elite do Partido Republicano procurava se afastar de Trump, certa que estava diante de uma derrota iminente, representantes das forças mais obscuras a ele se juntaram, como David Duke, dirigente da Klu Klux Klan.

Análises pós-eleições mostram como os principais eleitores de Trump foram os brancos do interior do país, empobrecidos e esquecidos pela globalização. Esses eleitores foram desprezados e tratados como jecas pelas elites intelectuais e multiculturais da costa oeste e dos grandes centros urbanos. Trump ofereceu a eles em sua campanha respostas simples e demagógicas a problemas complexos.

Hillary, por outro lado, jamais conseguiu se desvencilhar da associação óbvia que tem com o capitalismo financeiro descontralado, que quebrou o país em 2008, simbolizado por Wall Street, e com o poderoso lobby da indústria bélica e de segurança que já tragou trilhões de dólares nas guerras sem fim nas quais os EUA têm se envolvido nos últimos anos. Um dos seus inúmeros calcanhares de aquiles foi uma palestra que deu ao banco Itaú e pela qual recebeu US$ 250 mil. Acho que essa foi a única vez que o Brasil foi mencionado na campanha.

Assisti à apuração com meu pai, que estava me visitando. Hillary saiu na frente, mas à medida que avançava a apuração ficava mais clara a possibilidade de derrota: os votos de Miami e adjacências não eram grandes o suficiente para superar os do restante da Flórida. Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Ohio, todos estados do “cinturão de ferrugem”, tiveram seus votos contados para Trump. A zebra prevaleceu e Hillary perdeu.

Na manhã seguinte deixo meu filho na escola e paro para tomar um café em um lugar simpático, aonde vou quase todos os dias: vejo pessoas chorando e se abraçando. Meus amigos americanos envergonhados e pedindo desculpas. Cambridge é uma cidade de esquerda para os padrões americanos: todo mundo ficou chocado com o resultado. Alguns dias depois tomo um Uber. Motorista brasileiro, muito simpático, há 14 anos aqui. Ilegal, trabalhador, viu o pai ser deportado durante o governo Obama e agora morre de medo com o que lhe pode acontecer.

Trump prometeu deportar três milhões de imigrantes ilegais nos primeiros meses de seu governo. Ele vai ter que dar alguma satisfação a seus eleitores e é provável que faça algum barulho atacando um grupo socialmente vulnerável, como o dos imigrantes ilegais. O motorista de Uber me afirmou que, quando seu pai foi preso, a polícia tinha informações detalhadas sobre sua vida e está agora assustado. Ao mesmo tempo, os resultados mostraram que uma parcela significativa de mulheres e latinos votou em Trump.

Com um congresso majoritariamente republicano, Trump terá condições de nomear até três juízes para a Corte Suprema, desempatando o frágil equilíbrio que tem ali prevalecido desde a morte do conservador Antonin Scalia. Em questão, tópicos como aborto, controle de armas, políticas de ação afirmativa. Tais nomeações, se ocorrerem, terão um significado que será sentido mais além da duração dos mandatos de Trump, sinalizando uma clara inflexão conservadora na estrutura legal dos EUA. A grande imprensa e institutos de pesquisas de opinião saem também com suas reputações abaladas, dada sua incapacidade de entender ou prever o que acontecia no interior do país.

Em 13 de novembro, Arthur Sulzberger Jr., publisher do The New York Times, publicou uma carta aberta aos assinantes que foi um pedido de desculpas pela incapacidade do jornal de entender o que acontecia. Como sempre faço, deixei meu filho na escola. No parquinho, jogando bola, crianças de todas as cores e nacionalidades, filhos de refugiados, de acadêmicos e de imigrantes ilegais. Essa exposição a gente tão diferente, falando tantas línguas distintas e com histórias tão diversas, é uma dádiva a esses meninos e meninas. Esse é o lado bom da globalização, que agora é ameaçada pela vitória de Trump. Estarão as mesmas crianças brincando ali no ano que vem

*Eduardo Neves é professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e professor visitante no Departamento de Antropologia da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos


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