Domingos em festa

Domingos Oliveira com um retrato de sua mulher e parceira artística, a atriz e roteirista Priscila Rozenbaum. Foto: Marcos Pinto
Domingos Oliveira com um retrato de sua mulher e parceira artística, a atriz e roteirista Priscila Rozenbaum. Foto: Marcos Pinto

No dia 28 de setembro, Domingos Oliveira vai completar 80 anos. A sedução do homem que criou Todas as Mulheres do Mundo ainda persiste dentro do corpo endurecido pelo Parkinson. A precariedade física é compensada pela sagacidade da mente. “O corpo vai sumindo, mas a inteligência vai aumentando”, me confidencia.  

Quero falar sobre as comemorações de seus 80 anos, mas ele direciona a conversa para o tema que tem rondado sua mente: a morte. A morte como um fato, sem drama, sem poesia, simplesmente a morte. Um paradoxo, pois sua ânsia de viver claramente grita mais alto – e ele trabalha exaustivamente. O sol que brilha na janela do apartamento a uma quadra do mar do Leblon parece concordar. Seu filme BR716 (endereço de um apartamento onde morou na rua Barata Ribeiro, em Copacabana) levou os prêmios de melhor filme, direção, atriz coadjuvante (Glauce Guima) e trilha no Festival de Gramado, no começo do mês. Ele se passa no período anterior a Todas as Mulheres do Mundo, quando Domingos se separou de sua primeira mulher e, desolado, se entregou a uma boemia intensa dentro deste apartamento que protagonizou as festas mais loucas e divertidas do Rio de Janeiro no ano de 1964.

A nossa entrevista acontece minutos após ele ter digitado o ponto final na peça de teatro Ultimatum, seu mais novo projeto. O teatro, segundo ele, é “o último reduto da inteligência, de resistência contra o banal. A arte é um valor indispensável para a sobrevivência da espécie. O teatro é um gueto, é mínimo, já o cinema (brasileiro) é uma prostituta de luxo com sua ambição de ser indústria. Não há quem enfrente mais de peito aberto a condição humana do que a gente de teatro”. Ele pretende montar essa peça sem tempo e sem dinheiro: essa é sua nova filosofia de produção ou simples hipérbole em que sem tempo quer dizer pouco tempo e sem dinheiro pouco dinheiro. Uma tática de resistência contra a famigerada crise que devora a cultura. Domingos é cético quanto à política nacional, “O funcionamento é sempre igualzinho, a marcha do homem é muito lenta. Eu estou apavorado com a situação atual. Como os olhos ainda são infantis! Como o poder ainda é visto como um valor em si. Eu não consigo deixar de ver em tudo uma grande solidão existencial. Está tudo errado. É uma vergonha que o ministro dos Transportes não entenda nada de transporte. Eu sou artista. Meu interesse é trazer para a sociedade as contribuições da arte, que são muito objetivas e no momento estão completamente esquecidas. O problema é que as pessoas têm cada vez menos opinião sobre as coisas. E toda consciência é crítica. Vivemos uma recessão da crítica. É preciso dar às pessoas o direito de ter opinião.”

O incansável octogenário continua a desfiar sua lista de projetos por vir. A peça infantil O Dia em que os Adultos Desapareceram será protagonizada por sua neta Clara, no Teatro das Artes, ainda este ano. “Escrevi quando eu trabalhava na Manchete, em 1962, e nunca foi montada”. A Casa dos Budas Ditosos, monólogo dirigido por ele, com Fernanda Torres encarnando a libertária baiana de Ubaldo Ribeiro, que circula o País há 13 anos, já está com roteiro pronto para ser filmado, junto com Breno Silveira, no próximo ano; o espetáculo Doppleganger, com sua esposa, Priscila Rozenbaum, André Matos e Ricardo Kosoviski, também vai virar filme e começa a ser rodado em outubro deste ano. E ainda tem outros 20 projetos prontos à espera de verba. Como se não bastasse tudo isso, seu romance Antônio: o Primeiro Ano da Morte de um Homem (Record), está concorrendo na categoria autor estreante de ficção ao Prêmio São Paulo de Literatura.

Como se vê, nem o Parkinson, nem a idade, nem a obsessão com a morte impedem Domingos de produzir.

Comemoração
Os 80 anos serão comemorados, Domingos é um homem da festa. “Eu tenho compromisso com a vida. É obrigatório dar uma festa de aniversário. Deveria perdurar quatro dias. Como se eu fosse o Carnaval. Eu vou fazer um discurso sobre a morte no dia do meu aniversário que vai escandalizar.”

A morte sempre foi um tema para Domingos, o que poderia soar mórbido, mas para ele a morte é mesmo uma festa. Ao final de sua autobiografia, lançada recentemente pela editora Record, ele descreve um certo desolamento por ter que abandonar o Domingos personagem, por não ter mais um autor (ele mesmo) que guie seus passos. Ao final do livro, descreve uma terça-feira gorda, às cinco da manhã, num baile no Monte Líbano (clube que teve bailes épicos nos anos 80). Uma marchinha soa em coro as últimas notas daquele Carnaval – “a noite é linda nos braços teus, é cedo ainda pra dizer adeus”. Em sua analogia com a proximidade do fim diz: “Vi as mãos do baterista. Que, todas cheias de viris bandagens, sangravam sem perder o ritmo. Às vezes é assim. A gente sangra sem perder o ritmo.”

Uma boa morte
Domingos canta a morte sem cerimônia.  Insere a morte na linha do tempo, uma convenção abstrata que difere do instante, “esse intervalo de tempo que não dá pra você pensar, só sentir. O tempo é uma medida, um modo de compreender as coisas. Um método. Choveu e, depois da chuva, parou de chover”.

Quem o conhece sabe que sempre anunciou que viveria até os 111 anos, mas chegando aos 80 diz que mudou de charme. “Agora eu sei o que é a morte, eu vejo ela perto de mim, na minha frente, não como uma fantasia ou fonte de poesia.” A voz embarga ao falar das saudades dos que se foram, muitos amigos, amores antigos, saudade das pessoas que não vai ver mais. “Na verdade sou contra a morte, todo mundo é. A morte é inaceitável.”

Ele me explica que se prepara para a boa morte. “Tenho pensado muito, é uma questão seríssima. Eu queria morrer em glória. Bonito, sabe. Que ninguém chore por mim. Posso demorar uma ou duas tardes ou demorar mais 20 anos. Não fica bem a choradeira aos 80. Você morre gloriosamente quando consegue fazer um acordo com a morte. Chegar a um entendimento de uma ordem flexível, sem fissuras, sem buracos. Aceitar a morte em todos os seus aspectos é morrer bem. Não é morrer em paz. Isso muda muitas coisas. No sentido de você aproveitar a vida. Morro de medo da morte. Seria um completo idiota se eu não tivesse medo da morte. Fazer as pazes com a religião pra mim seria impossível, sou um sartriano. Não posso aceitar uma figura protetora, uma figura paterna. Se Deus existe é problema dele, eu não consigo acreditar. De vez em quando vou ao encontro da ideia da fé, mas não a ponto de conversar com ela.”

Relembra uma história de 35 anos atrás: um repórter invadiu sua casa de madrugada e o encontrou ainda bêbado após uma festa. Vinha dar a notícia da morte de Glauber Rocha. “Eu perguntei: ‘morreu como?’ Ele respondeu: ‘num avião vindo da Europa, ele estava doente.’ Eu fiquei tão desesperado com aquilo, porque eu gostava muito do Glauber. Eu disse para o repórter: ‘só tenho pena de uma coisa. Que ele não tenha morrido se jogando do Cristo Redentor num mergulho na Baía de Guanabara.’ O pessoal do Cinema Novo ficou revoltadíssimo comigo.” E Domingos ri gaiatamente.

Além do flerte intenso com a morte, pergunto o que mudou com a proximidade dos 80. Existe uma crise dos 80? A voz comprometida pelo Parkinson dificulta meu entendimento, a baixa emissão sonora e a articulação endurecida me obrigam a aproximar o ouvido de sua boca. Domingos me surpreende. O homem que viveu uma vida espetacular de amores, boemia, arte e que até então nunca tinha amargado arrependimentos me confessa que o tempo lhe abriu novas janelas e que agora gostaria de poder mudar tudo: “Sou o arrependimento em pessoa. Eu viajei pouco, casei muito pouco, trepei muito pouco, fui muito pouco ao cinema, a vida deve ser medida pelo prazer que você leva dela. A alegria e a lucidez são vizinhas. Na cortina final você nota o que é real e tudo na sua vida se volta para aproveitar o instante que você tem”.

Tento atravessar a linha da morte para o sexo. Onde se encaixa o erotismo a esta altura da vida? Seus olhos brilham.“Tudo é sexo. Sexo é a força fundamental. Somente na cama os seres humanos se revelam como são. O sexo é educativo. Ainda sou muito ligado nisso, estou ficando velho, né? Quando vejo mulheres bonitas estou automaticamente fazendo charme pra elas. Mas eu sou um velho e tem o preconceito contra o velho, é terrível. O preconceito contra o velho é quase tão forte quanto contra o negro. Estou exagerando. Mas a gente se torna uma presença desagradável. É bem triste sentir que seu corpo vai embora. É muito triste. Você perde muita coisa. Não posso dar uma volta no quarteirão, por exemplo. É preciso uma imaginação de gênio para substituir essas coisas. Eu sou um escritor que não lê porque os olhos não funcionam e não escreve porque o Parkinson não deixa. Se você perguntar se eu sou feliz, eu sou feliz. Eu sei que poderia estar muito pior, e esse argumento é definitivo.”

Sorrio diante da irrefutável velhice que lhe abate.“A velhice é uma merda, depois não vá dizer que eu não avisei. Você entrou de penetra na festa e ainda não te descobriram escondido no banheiro pra te botar pra fora.”

Minha pergunta retórica sobre a velhice ser um fenômeno da nossa época é rebatida de imediato. “Somos um cadáver adiado. A vida não é um mar de rosas. Mas é uma coisa feita por um artista, muito bem imaginada. De uma beleza intensa.”

Um filósofo do amor
O amor permeia a vida e a obra de Domingos, desde Todas as Mulheres do Mundo. Seu primeiro filme, que o lançou ao panteão do cinema nacional, é um tratado sobre o amor. Sua adoração por Priscilla Rozenbaum está estampada nas paredes do apartamento, onde pendem pôsteres de filmes que fizeram juntos nesses 35 anos de casamento e uma impressionante foto dela displicentemente fumando um cigarro sobre o computador, lugar onde Domingos passa a maior parte de seu dia.

Sobre o casamento com Priscilla, ele diz: “O amor nunca desapareceu. Brigamos, odiamos, traímos desejando outras pessoas, tivemos arrefecida nossa atração sexual, nosso amor mudou às vezes ao ponto do irreconhecível, mas não desapareceu. Isso não significa que somos felizes. Não. Ninguém casado é feliz. A felicidade é uma ideia que os homens inventaram para enlouquecer.”

Pergunto se a capacidade de amar diminui com a velhice, se esmaece como a visão e outros sentidos. Domingos dá uma pausa e sorve lentamente seu guaraná. “Você é impotente, você não ficou impotente. Contra o sofrimento da vida nada se pode fazer, a não ser amar. O amor é um mistério que parece justificar a vida. Não tem o menor sentido, mas justifica. É muito estranho, como se alimentasse a própria vida. Um homem pode deixar a vida passar sem ao menos pressentir o espanto filosófico, o imenso fascínio das ciências, das artes e demais conhecimentos. Mas sem amor ninguém vive. Do santo à besta, do sábio ao ignorante, todos são sacudidos por este mesmo terremoto. O amor é também sinônimo de inteligência. O casamento, a fidelidade, o ciúme, todos são valores que merecem avaliação. Mas a paixão, esta é absoluta. Única moeda cósmica que temos à disposição.”

Comento que sua vida foi espelhada em filmes e peças de teatro, que sua obra é despudoradamente autobiográfica. “O autor sempre escreve sobre si mesmo, sempre.”

Domingos tem quatro netos. Clara (16 anos), Laura (14), Gabriel (12) e Isabel (9). Quando os netos foram nascendo pensou: “Não são meus filhos, não tenho nada a ver com isso”. Tinha certeza de que eles não representariam a mudança de paradigma que sua filha representou. “Com minha filha, Maria Mariana, deixei de ser um ponto solto no universo e passei a ser uma linha entre o passado e o presente.” Mas o descaso em relação aos netos não durou dois dias, ele é completamente apaixonado por eles.

Antes de me despedir, ele admite sua nova mania, assistir no National Geographic a documentários sobre a vida dos animais. “É a história natural. A vida se mete no buraco mais sórdido onde ela tem menos chance, e ela se multiplica. A vida poderia ser boa, a natureza poderia ter uma equação em que os bichos nascessem num lugar onde tivessem comida pra comer. Mas não é isso que acontece. A natureza coloca milhares de espécies em disputa. Todos dizem que ela é um moleque irresponsável, mas não estou interessado nisso. O que é a vida? A única questão que existe é o que vamos fazer nos próximos 15 minutos.”

Hedonismo, paixões e juventude

"Cartaz

Rodado em preto e branco, BR716 é um filme de geração às vésperas do golpe civil-militar. Um filme sobre amor, juventude e boemia. Felipe (Caio Blat) – protagonista e alter ego de Domingos Oliveira – é um escritor abandonado pela mulher (Maria Ribeiro), que transforma seu apartamento numa festa ininterrupta. Lá os amigos, intelectuais da juventude carioca, dormem, bebem e amam. Felipe se apaixona por Gilda (Sophie Charlote), moça de beleza deslumbrante (aceno a todas as divas do cinema dos anos 1950 e 60) para em seguida conhecer Sara (Aleta Valente), uma menina do subúrbio, poeta melancólica. O triângulo se arma. A rotina hedonista dessa turma é atravessada por Sílvio (Sergio Guizé), um ativista político de São Paulo, que traz notícias do golpe à espreita.Felipe bebe o apartamento até o último centavo.

Autobiográfico, BR716 se passa no período anterior a Todas as Mulheres do Mundo. Os cortes descontínuos, os monólogos feitos diretamente para a câmera e a metalinguagem costuram a narrativa. Uma perspectiva da condição humana embebida em álcool, poesia e humor, a ficção de uma realidade ébria.

Além do jovem elenco que compõe de forma afiada a turma de Felipe (Lívia de Bueno, Alamo Facó, Glauce Guima e Gabriel Antunes), o filme conta com participações de Daniel Dantas, Pedro Cardoso e uma aparição ilustre de Paulo José.

Em tempos de ditadura do conservadorismo, o filme é uma lufada de vida e de anarquia


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