A poética indizível de Sérgio Sampaio

Sergio Sampaio PO leitor mais atento já deve ter percebido que raramente utilizo a sigla MPB e prefiro grafar as iniciais por extenso. O principal motivo de minha oposição ao rótulo consolidado no início dos anos 1970 é que a etiqueta “MPB” atravessou as últimas quatro décadas associada a um imaginário tanto quanto restritivo, se considerarmos a rica diversidade da expressão literal “música popular brasileira” e as distinções estéticas de seus inúmeros protagonistas. Em 1945, a etnógrafa e crítica musical Oneyda Alvarenga publicou um livro, referência para pesquisadores, com o título Música Popular Brasileira. Folclorista, influenciada pelas incursões musicográficas de Mário de Andrade, Oneyda expôs a miríade de gêneros, ritmos e acentos musicais espalhados no extenso território de nosso País.

Hoje, pergunte a qualquer brasileiro alheio a essas questões: afinal, o que é MPB? As respostas certamente virão acrescidas de uma lista com o nome de artistas que habitam espécie de “Olimpo” da canção brasileira. Território nobre, povoado por “deuses” como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Maria Bethânia e Milton Nascimento. Lógico, ninguém há de contestar a grandeza desses artistas, mas, é inegável, desde o começo dos anos 1970 quando houve a consolidação deste conceito de MPB, eles protagonizam – involuntariamente, diga-se – um absolutismo nocivo para artistas com menor potencial mercadológico. Caso explícito do cantor e compositor reverenciado hoje em Quintessência, o capixaba Sergio Sampaio.

Morto há exatos 20 anos, Sergio tomou de assalto as rádios de todo o País no Carnaval de 1973 com o estrondoso sucesso de Eu Quero é Botar Meu Bloco Na Rua. Mesmo não conquistando premiação na disputa do VII FIC – Festival Internacional da Canção, de 1972, a composição dividiu com Diálogo, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, um compacto da série As Melhores do VII FIC, que atingiu a impressionante marca de mais de meio milhão de cópias vendidas. Êxito que fez com que a Philips, sob produção de Roberto Menescal, colocasse Sérgio às pressas em estúdio, com os músicos do Azymuth e o baterista Wilson das Neves (leia post sobre o músico), para gravar seu primeiro LP. Mesmo intitulada com o carro-chefe do compacto campeão de vendas a estreia autoral de Sérgio, obra-prima deste notório excluído do rol de intocáveis da MPB, acabou sendo um fracasso comercial. Registrou apenas 5 mil cópias vendidas e motivou a saída imediata do compositor do selo holandês comandado por Andre Midani (por essas e outras, me incomoda a lógica excludente do pré-requisito de êxito comercial para o ingresso no seleto grupo de estrelas do que se convencionou chamar MPB).

Natural de Cachoeiro do Itapemirim, conterrâneo de Roberto Carlos e Rubem Braga, Sérgio Moraes Sampaio nasceu em berço musical, no dia 13 de abril de 1947. Filho do maestro e compositor Raul Sampaio e da professora Maria de Lourdes Moraes, ele sofreu forte influência do pai, que além da música tinha como principal ofício a confecção de tamancos. Na adolescência, quando arriscava suas primeiras composições e ajudava o pai na tamancaria, Sérgio era apaixonado por três ases da voz: Orlando Silva, Silvio Caldas e Nelson Gonçalves. Aos 20 anos, em busca de se consolidar como compositor, o jovem capixaba partiu para o Rio de Janeiro e deu início a uma trajetória comercialmente instável, mas de incontestável regularidade criativa. Exagero algum afirmar que Sérgio, dono de uma poética das mais singulares, foi um dos compositores mais importantes de sua geração.  

No primeiro biênio carioca, entre 1968 e 1970, sua principal ocupação foi de radialista, em empregos formais nas rádios AM Mauá, Rio de Janeiro, Carioca e Continental. A mudança para a Cidade Maravilhosa e o plano de se estabelecer como artista aproximou Sérgio da boêmia dos bares em que se apresentava a noite, municiado de violão e voz, e das rodas de samba em morros como o Tuiuti, em São Cristovão e da Mangueira.

Em fevereiro de 1970, decidido a empenhar força máxima para a consolidação de sua carreira, Sérgio pediu demissão da rádio Continental. Escolha que, dada a consequente instabilidade financeira, colocou o jovem em apuros por quase um ano. Sem dinheiro, ele chegou a dormir em bancos de praça. Mas a sorte cruzou seu caminho quando conheceu o compositor Odibar, parceiro musical de Paulo Diniz. Acompanhando Odibar em um teste no qual este último se apresentaria para a CBS, Sérgio acabou sendo submetido a uma audição com Raul Seixas, à época, produtor na gravadora. A empatia foi imediata e Raulzito passou a espalhar composições do capixaba, sob o pseudônimo Sérgio Augusto, entre os artistas do cast da CBS. Caso de Vê Se Dá Um Jeito Nisso, Sol 40 Graus – esta em parceria com o produtor Ian Guest, gravadas pelo Trio Ternura – e Hoje é Quarta-Feira, registrada no álbum de estreia da dupla Tony (o soulman Tony Bizarro) & Frankie (pseudônimo do cantor Fortunato Arduini).

Em 1971, com produção de Raul e arranjos de Ian Guest, Sérgio gravou seu primeiro compacto, com as composições Coco Verde e Ana Juan – já com o sobre nome Sampaio. Naquele mesmo ano, ele integrou a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista. O grupo formado por Raul, Sérgio, Miriam Batucada e Edy Star lançou o anárquico álbum Sessão das Dez (ouça a íntegra). Reza a lenda, Raul decidiu gravar o LP em uma operação relâmpago à revelia de seu chefe, o diretor artístico João Araújo, que estava fora do País. Há alguns anos, a história foi contestada pelo kavernista Edy Star, que garantiu, em texto publicado no seu blog, que tudo foi feito às claras, tanto que Raul continuou a trabalhar para a CBS e produziu, inclusive, um compacto de Miriam Batucada, com Diabo no Corpo, composição de Sérgio. Ainda em 1972, ele encerrou sua estadia na CBS com o compacto que continha Classificados n° 1 e Não Adianta. Por recomendação de Raulzito, o amigo Sérgio ingressou na Philips e logo após a contratação participou do VII FIC com Eu Quero é Botar meu Bloco Na Rua.

Sérgio Sampaio em foto da contracapa de Tem Que Acontecer
Sérgio Sampaio em foto da contracapa de Tem Que Acontecer (1976)

Como lembramos há pouco, apesar do sucesso arrebatador da composição e do LP, feito a toque de caixa, Sérgio sucumbiu à tímida aceitação comercial de sua brilhante estreia e foi demitido da Philips no começo de 1974. Acolhido pela Continental, ele enfrentou um hiato de quase três anos até o lançamento do sucessor de Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua. Pelo novo selo, ele gravou o compacto simples, que contém Velho Bandido (veja vídeo do artista interpretando a canção em 1991) e O Teto da Minha Casa. Pela Philips, seu último registro foi o compacto simples que contém Foi Ela e Meu Pobre Blues, uma homenagem ao conterrâneo Roberto Carlos, irônica com o romantismo exacerbado do repertório adotado pelo Rei naquela primeira metade dos anos 1970, como atesta a frase “E agora que esses detalhes já estão pequenos de mais / E até o nosso calhambeque não te reconhece mais / Eu trouxe um novo blues / Com um cheiro de uns dez anos atrás / E penso ouvir você cantar”.

Essa mesma ironia sagaz e elegante está presente em Tem Que Acontecer. A começar pela composição que dá título ao álbum. A despeito de não trazer nenhuma referência clara ao fato ela remete a frustração comercial da Philips e conclui com a frase “Mas não posso fazer nada / Eu sou (sou só) um compositor popular”. Reunindo 12 composições Tem Que Acontecer foi produzido por Roberto Moura e teve os arranjos escritos por João de Aquino e o maestro Lindolfo Gaya. Entre os músicos envolvidos na gravação, estão craques como o baterista Paschoal Meirelles, o baixista Luizão Maia, o maestro Laércio de Freitas, o clarinetista e saxofonista Abel Ferreira, o flautista Altamiro Carrilho, o bandolinista Zé Menezes, o gaitista Maurício Einhorn e os mestres da velha guarda do samba Bide e Marçal. Impecável, o repertório de Tem Que Acontecer é um retrato de Sergio Sampaio no auge de seus predicados de compositor e traz uma preciosidade: o samba-canção O Que Pintá, Pintô, de autoria de seu pai, Raul. Difícil destacar uma ou outra composição… Todas elas fundem melodias irretocáveis à letras de uma poética singular, mas canções como Cada Lugar na Sua Coisa, Quatro Paredes, Velho Bode (esta em parceria com Sérgio Natureza), Até Outro Dia e A Luz e a Semente são exemplares da maturidade artística atingida por Sérgio naqueles 23 dias de registro de Tem Que Acontecer (o álbum foi gravado no Estúdio Level, no Rio, entre os dias 3 e 26 de maio de 1976). 

Outra grande composição, Que Loucura, presta reverencia ao poeta piauiense e grande letrista da Tropicália Torquato Neto. Uma das grandes influências para os caminhos trilhados à margem por Sérgio, Torquato se suicidou um dia após completar 28 anos. O capixaba também teve vida breve. Depois de empreender mais de duas décadas de abuso de álcool e drogas, morreu, aos 47 anos, vitimado por uma crise de pancreatite, há exatas duas décadas, em 15 de maio de 1994. Intransigente com as ingerências de gravadoras e produtores com seu trabalho, Sérgio saiu da Continental, viu crescer sua fama de “difícil” e somente foi gravar seu terceiro álbum em 1983. Intitulado Sinceramente o LP foi lançado de forma independente e teve repercussão ainda menor, a despeito de apresentar mais uma leva de 11 grandes composições.

No hiato de 11 anos de ostracismo enfrentado pelo capixaba, um dos pontos altos de tentativa de resgate da importância de Sérgio foi organizado pelo diretor artístico Xarlô. Em 1988, ao longo de dez dias ele promoveu uma série de apresentações de Sergio acompanhado de outro grande artista ausente do panteão da MPB, o amigo Jards Macalé.

Veja excerto da apresentação de Sérgio Sampaio no Festival Phono 73

No final de abril último foi lançado na internet o site vivasampaio.com.br dedicado a vida e a obra de Sérgio Sampaio. Iniciativa do filho único do compositor, João Sampaio Breitschaft, a página contém, entre outras seções, um blog. No primeiro post o amigo Xarlô deixou um forte testemunho dimensionando o peso que o rótulo de “maldito” exerceu sobre a personalidade sensível do amigo. “Essa nomenclatura/rótulo era uma das causas da sua tristeza. Esse peso minguou ainda mais o Sérgio. Fisicamente, espiritualmente, emocionalmente, causou uma ruptura na sua estrutura psicológica, maculou seu nome, sua autoimagem, seu lado de homem público”.

Infelizmente, expediente dos mais comuns em nosso País, as iniciativas para valorizar a importância de Sérgio e tirá-lo dessa seara ingrata dos malditos só foi acontecer depois de sua partida precoce. Em 1998, o amigo e parceiro de composição Sergio Natureza idealizou um CD em homenagem ao xará, intitulado Balaio do Sampaio. O álbum reuniu, entre outros, João Bosco, Macalé, Luiz Melodia e Erasmo Carlos, que interpretou Feminino Coração de Deus, gravada pelo Tremendão no álbum Mulher, de 1981. Meses antes de morrer, Sergio foi sondado por Luiz Calanca, dono da loja e do selo Baratos Afins, para lançar seu quarto álbum. Não houve tempo hábil para o registro ser finalizado, mas, em 2005, Zeca Baleiro, grande entusiasta da obra de Sérgio, remasterizou algumas gravações originais e acrescentou à elas outros instrumentos. O álbum foi lançado pelo selo de Zeca, Saravá Discos, sob o título Cruel.

Outra importante iniciativa de resgate veio em 2000, com o lançamento da biografia Eu Quero é Botar Meu Bloco Na Rua. Escrito pelo jornalista Rodrigo Moreira o livro foi publicado pela editora niteroiense Muiraquitã. Ainda sem previsão de lançamento, está em produção um documentário assinado por Chico Regueira e Inês Garçoni. Outra homenagem relevante é o Cabine 103, idealizado por Julia Bosco (sim, filha do João), Gustavo Macacko e Juliano Raujah, conterrâneos de Sergio, o projeto apresenta, por meio das composições, as diversas facetas do artista: o compositor politizado, o cancionista primoroso e o romântico guiado por excessos.

No carnaval de 2014 o violonista e guitarrista Renato Piau –  parceiro musical dos mais regulares, na trajetória de Sérgio e de Luiz Melodia – Chico Regueira e Inês Garçoni idealizaram mais uma ode ao capixaba, o bloco carnavalesco Meu Bloco Na Rua de Sérgio Sampaio. A concentração dos foliões acontece com uma roda de samba no Bar Botero, sediado na rua das Laranjeiras, no bairro de mesmo nome da zona Sul carioca.

Que o bloco saia nos próximos carnavais! Que a cada novo ano mais e mais ouvintes se deixem seduzir pela grandeza deste compositor ímpar e, como recomendava ele em seu maior sucesso, botem pra gemer!

Salve Sérgio Sampaio!

Ouça a íntegra de Tem Que Acontecer

Boas audições e até a próxima Quintessência!


Comments

Uma resposta para “A poética indizível de Sérgio Sampaio”

  1. Avatar de Allef Raphael
    Allef Raphael

    Procurando imagens do Sérgio Sampaio, clico em uma e sou direcionado pra cá. Melhor artigo que eu li sobre o artista. Êxtase no parágrafo relacionado ao conceito de MPB. Já pensei inclusive em iniciar um projeto de valorização da legítima Música Popular Brasileira… mas sempre me falta o arranque inicial (motivação). Riqueza e valor de informações inestimáveis. Já conhecia a Sociedade da Grã Ordem Kavernista, mas por exemplo: eu sempre procurei uma página do Sérgio para curtir no Facebook, mas nunca tinha encontrado. Até agora. Com o direcionamento para o site Viva Sampaio, tem também uma página. Link devidamente favoritado para a posteridade. Marcelo, posso apenas humildemente te dizer: MUITO OBRIGADO. P.S: tenho 19 anos. A essência ainda vive e respira. Abração.

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