Cartilha da discórdia

Maria Helena Franco, ao lado de Vera Simonetti, ambas da equipe multidisciplinar da ONG Ecos – Comunicação em Sexualidade, foi uma das coordenadoras responsáveis pela criação do chamado kit anti-homofobia. Questionada sobre a decisão da presidente Dilma Rousseff de suspender a distribuição do kit para as escolas, Maria Helena não esconde seu desapontamento: “Eu me sinto muito triste, desrespeitada”.

A mesma frustração da mestre em Ciências na área de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade foi sentida pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), hoje o mais atuante político na defesa dos direitos LGBTTs no Congresso Nacional. Em texto publicado em seu site, o deputado, homossexual assumido, manifesta a sua decepção com uma pergunta dirigida diretamente à presidente: “Onde está a ‘defesa intransigente dos Direitos Humanos’ que a senhora prometeu quando levou sua mensagem ao Congresso?”.

De fato, o embate entre opiniões favoráveis e, principalmente, contrárias ao kit dificultou o entendimento do material, acusado, entre outras coisas, de fazer “apologia à homossexualidade”. Magda Chinaglia, doutora em Medicina pela UNICAMP e pesquisadora da ONG Reprolatina, rebate tal argumento: “Orientação sexual não é uma opção das pessoas, ninguém escolhe ser homo, hétero ou bissexual. Portanto, nem o kit nem qualquer outro material teria o efeito de induzir ou incentivar a homossexualidade. As pessoas que se apoiam nesse argumento para desqualificar o kit estão desinformadas ou deliberadamente mal-intencionadas”.

Diversidade sexual
O kit anti-homofobia faz parte do programa federal Escola sem Homofobia. O projeto foi planejado e executado pela Global Alliance for LGBT Education (GALE); as ONGs Reprolatina, Ecos – Comunicação em Sexualidade e Pathfinder do Brasil; e a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Todas as etapas de planejamento e execução do projeto foram debatidas e acompanhadas pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (MEC/SECAD).

Desenvolvido ao longo de dois anos, o kit é composto por material didático destinado aos profissionais da educação e seria distribuído para seis mil escolas públicas de ensino médio, a partir do segundo semestre de 2011. Nele, os professores encontram referências teóricas, conceitos e sugestões de atividades e oficinas para discutir com os alunos a diversidade sexual. “O material promove os direitos humanos e tem como objetivo fazer da escola um espaço onde todos possam aprender a conviver com as diferenças”, resume Maria Helena Franco.

Mas, se o governo federal recuou em relação ao kit, um estudo realizado em 2009 pela ONG Reprolatina mostra que o ambiente escolar é altamente homofóbico e necessita, sim, de políticas públicas de combate a essa forma de preconceito. Realizada em 11 capitais brasileiras, a pesquisa ouviu 1,4 mil pessoas, entre professores, estudantes, merendeiras, coordenadores, diretores e porteiros, e identificou que, na maioria das vezes, a hostilidade contra alunos LGBTT surge em forma de piadas ou brincadeiras potencialmente ofensivas, mas nem sempre identificadas como homofobia. “É urgente que professores sejam capacitados e recebam materiais educativos para debater o tema, visando à redução do preconceito e da violência homofóbica”, avalia Magda Chinaglia, uma das coordenadoras da pesquisa. A decisão de suspender o kit, segundo ela, também desqualifica a escola, ao minimizar “a capacidade dos docentes de atuarem como formadores de opinião”.

Não faltam levantamentos sobre homofobia na escola. Publicada em 2004, pesquisa da UNESCO revelou que um quarto dos estudantes não gostaria de ter um colega homossexual na mesma sala. Em outro estudo, feito pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) em 500 escolas públicas brasileiras, os alunos concordaram com as seguintes afirmações: “Eu não aceito a homossexualidade” – 26,6%; “Pessoas homossexuais não são confiáveis” – 25,2%; “A homossexualidade é uma doença” – 23,2%; “Os alunos homossexuais não são normais” – 21,1%.

Os efeitos da homofobia
As consequências psicológicas em quem sofre bullying homofóbico podem ser devastadoras. Pesquisas nos Estados Unidos mostram que jovens homossexuais são de duas a três vezes mais propensos a tentar o suicídio, quando comparados a jovens heterossexuais. José Leon Crochík, professor do Departamento de Psicologia da USP, explica que as pessoas reagem de formas distintas, podendo superar ou não as consequências, e menciona os efeitos observados em vítimas de discriminação nas escolas: desenvolvimento e manifestação de insegurança, medo, raiva, humilhação; dificuldade de relacionamento; e dificuldade de expor e lutar pelo que deseja. “Nossa sociedade, por enaltecer a vitória e desprezar os derrotados, por valorizar a força, suscita continuamente o bullying.”
Para Crochík, é necessário discutir todo o tipo de preconceito no ambiente escolar. “Quanto mais todos puderem se identificar com os homossexuais, entendendo que são pessoas como outras quaisquer, que têm desejos, sentimentos, pensamentos, pai, mãe, amigos, etc., menos violência será destinada a eles.”

Adequação
Em sua página no Facebook, a senadora Marta Suplicy (PT-SP) divulgou nota em que defende a decisão de Dilma Rousseff: “O cuidado da presidente com a adequação do kit anti-homofobia é compreensível”. A senadora, no entanto, salienta que: “É responsabilidade do governo fornecer informação sobre sexualidade para crianças e adolescentes, assim como combater qualquer tipo de preconceito”. E o local para isso é a escola.

O ministro da Educação, Fernando Haddad, usou o mesmo argumento para explicar a suspensão do kit, afirmando que a presidente “entendeu que aquele material não estava adequado”. A ideia, agora, disse o ministro em audiência no Senado Federal, é incluir outros temas no combate ao preconceito nas escolas. Além da homofobia, intolerância religiosa, questões de gênero e racismo. Fernando Haddad não definiu prazo para que o novo projeto seja concluído.

Polêmico, o kit anti-homofobia levantou o debate sobre qual a melhor forma de tratar a questão do preconceito nas escolas. Para aqueles que ainda se opõem a uma educação escolar em que todas as manifestações de gênero, amor e sexualidade sejam abordadas, José Leon Crochík afirma: “Os pais dos alunos devem entender que não será a discussão escolar que irá decidir a orientação sexual de seus filhos e, principalmente, que sua oposição não ajuda no combate à homofobia. Eles também devem se identificar com aquele que sofre a violência”.


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