O jornalista, produtor e apresentador  Fernando Faro. Foto: Luiza Sigulem
O jornalista, produtor e apresentador Fernando Faro. Foto: Luiza Sigulem

Conta-se que Orson Welles foi fazer uma palestra na Suécia. Na hora, se decepcionou com o público diminuto de 12 pessoas e abriu a palestra se apresentando: “Como vocês sabem, sou diretor de cinema, ator, roteirista, escritor, jornalista, figurinista, roteirista… Ou seja, eu sou tantos e vocês são tão poucos para me ouvir…”.

Se Fernando Faro, 83 anos, mais de 50 como jornalista, produtor, apresentador e roteirista, tivesse o espírito vaidoso de Orson Welles, talvez se apresentasse assim para alguns que preferem reverberar a cultura norte-americana e que teimam em não conhecê-lo e reconhecê-lo como um dos nomes mais importantes da música brasileira.

Mas Faro é uma pessoa que não precisa falar sobre o que faz, a sua biografia fala sozinha. Quem quiser que estude um pouco sobre a história da música brasileira para conhecê-lo. É impossível conversar com ele sem chamá-lo de Baixo, pois este é o termo que ele usa o tempo todo com as pessoas. Daí, é um Baixo para cá e um Baixo para lá que não tem mais tamanho. O apelido, ele ganhou do grande homem de rádio e depois de TV, Cassiano Gabus Mendes. Com mais de 700 programas Ensaio e MPB Especial e produção de históricos shows, Faro entrevistou – e ainda entrevista – na TV Cultura (São Paulo) os nomes mais proeminentes da música brasileira, indo do popular ao sertanejo, forró, soul e rock, sem o menor preconceito. Mesmo tendo preferência especial pelo samba.

Baixo foi o idealizador do tipo de entrevista na qual a voz do entrevistador não aparece. Digno dele, que gosta de bastidores. E aqui ele fala de bastidores, não só do mundo da música como também do jornalismo e do futebol, a sua segunda (ou seria a primeira?) vocação.

Brasileiros – Você radicalizou na questão de que o entrevistado é quem tem de aparecer e não o entrevistador. Em seus programas, nem sua voz aparece…
Fernando Faro – Baixo, você quer saber como começou? Bom, no início da década de 1960 havia dois bandidos famosos: Promessinha e Jorginho. Eu era editor de telejornalismo da Globo e, sempre que terminava o jornal, saía com um cinegrafista na tentativa de localizar um dos dois e fazer uma reportagem, que seria um furo. E aí o Promessinha foi preso. O Nelson Gato, chefe da seção de polícia do jornal Última Hora apareceu até em uma foto, dando uma gravata no Promessinha. E ele disse assim: “Baixo, é só você por um cinegrafista comigo que eu encontro o Jorginho”. Eu disse que não, pois ia pegar o bandido primeiro. Passou algum tempo e um dia ligaram para mim no jornal, dizendo que o Jorginho estava preso. Ele foi pego na Vila Maria, onde jogou bolinha de gude uma tarde toda. A polícia, de campana, prendeu. Aí, chamei o meu parceiro cinegrafista, que não lembro mais o nome, e fomos para, sabe o Dops, onde funcionava aquele de negócio de tortura? Como chamava aquela rua? (Largo General Osório, na Estação da Luz, em São Paulo). Fui até lá, mas o pessoal da polícia disse que nem eu nem o cinegrafista podíamos entrar na cela. Passei o microfone para o Jorginho e ficamos do lado de fora das grades, a uns quatro metros. E comecei a perguntar: “Como é que foi aquele negócio do quitandeiro japonês? Você passou por cima dele com o carro?”. Ele respondeu: “Passei, mas ele já estava morto”. Nisso, ele me fala: “Quase apaguei você”. Eu disse: “Eu?”. Vou contar. Eu ia atrás dele, queria fazer a entrevista de qualquer jeito. Não queria esse negócio de ir com a polícia. E eu me lembro de que fui à favela da Vergueiro e saí perguntando: “Cadê o barraco do Jorge?”. Aí, uns caras mostraram o barraco dele. Tinha uma luz acesa, eu bati e chamei: Jorginho, Jorginho… E nada. Fui na parte de trás, onde também tinha uma luz acesa, bati… Ninguém. Na entrevista, ele me disse que estava lá. Pô, quase me apagou.

Brasileiros – Mas você perguntou por que ele não atirou em você? Ele viu que você era repórter, é isso?
F.F. – Não, nada disso. Não atirou para não fazer barulho, para não chamar a atenção da vizinhança. Aí, Baixo, eu cheguei com esse material na Globo paulista. Peguei o material, o áudio, comecei a manejar e tudo. Pensei: “Pô, isso aqui dá uma matéria boa, não precisa ninguém aparecer perguntando”.

Brasileiros – Só a voz dele?
F.F. – Isso. Então, Baixo, trabalhei o material, editei e coloquei no ar. Deu muita repercussão. A partir daí, comecei. Tudo o que eu fazia era assim, desse tipo, Ensaio, MPB Especial… Tem aquela coisa do Umberto Eco, de comunicação, de que um apresentador é um ruído…

Brasileiros – Você chegou a fazer Ensaio com João Gilberto?
F.F. – Ensaio não. Fiz um especial para a Bandeirantes. Eu adoro João Gilberto. A primeira vez que tive contato com o João foi na TV Tupi, em um programa que o Abelardo Machado fazia. Ele lá, contando coisa, né? Então, ele disse que estava morando em Salvador, na Barra, onde pegava uma bicicleta na madrugada e ia até Amaralina. Aí, o João disse: “Um dia desses, estou voltando do passeio e tinha uma obra em construção, eu cheguei lá e vi um menino. Perguntei quem ele era. Ele me disse que era Silva, que tinha 12 anos e era ajudante de pedreiro. Me deu uma vontade de chorar… Como é que um menino de 12 anos se chama Silva e é ajudante de pedreiro? Com 12 anos tem de chamar Zezinho, Toninho, Joãozinho e estar na escola brincando…”.

Brasileiros – E a história que presenciou sobre uma bolinha de pingue-pongue…
F.F. – Estávamos com o Valter Silva, lembra dele? (Jornalista e historiador da MPB, que tinha um programa chamado Picape do Picapau, na década de 1960). O Valter começou a jogar pingue-pongue com o João, com aquele negócio zen de pegar de bolinha e levantar bem devagar. No que ele levantou, o Valter deu a maior cortada na bola, com muita força. O João disse assim: “Tá com ódio, com raiva de quem? Quebrou a bolinha…”. Peguei outra bolinha e disse que aquela era japonesa, João retrucou: “Não é japonesa, não. Esta é chinesa. Ouça, a japonesa faz zzzzzz e a chinesa faz zum zum zum”.

Brasileiros – Fazer amizade é uma arte para você?
F.F. – É uma coisa natural. Por exemplo, a amizade que eu tenho com o Chico, com o Paulinho da Viola, com o Oscar Niemeyer, é tudo assim, eu vendo, ouvindo eles…

Brasileiros – No livro de seus 80 anos, você é homenageado por grandes personalidades.
F.F. – Rapaz, eu acho que é fruto da amizade que eu tenho por eles, e eles um pouquinho por mim. Por exemplo, o Chico Buarque. Eu conheço o Chico desde quando ele começou. “Eu quero ver um dia…” (cantarola). Lembra dessa música? (Marcha para um Dia de Sol). É a primeira música dele. Não gosta nem de cantar. Ele me disse: “Ah, Baixo, eu queria fazer uma música, eu queria fazer um samba como aqueles sambas do Ismael Silva, do Geraldo Pereira e saiu esse aí, de que não gostei”.

Brasileiros – Ele conta que foi um dos primeiros entrevistados do programa Móbile, na TV Tupi. Foi uma emoção para ele, pois não era conhecido ainda, em 1964, e você o descobriu.
F.F. – Eu me lembro de que um dia ele chegou na Tupi e eu fui encontrá-lo na porta. Ele falou: “Vim lhe apresentar aqui o…”. Como se chamava aquele camarada que compôs Hoje?

Brasileiros – Taiguara.
F.F. – Isso, meu companheiro Taiguara. Aí, o Chico falou: “Ah, Baixo, ele é que é cantor. Você tem de convidar ele e não eu”. Respondi: “Ah, Baixo, mas eu quero você”. Mais tarde, fiz um Ensaio com o Taiguara, que foi uma revelação para mim, mas primeiro fiz com o Chico.

Brasileiros – O Sérgio Cabral e o Manoel Carlos, por exemplo, falam que você é o homem mais importante da música brasileira na televisão, o que você acha disso?
F.F. – Acho que não é verdade. A música brasileira tem figuras fantásticas, a começar pelo Ismael Silva. Tem gente boa à beça.

Brasileiros – Mas como produtor e pesquisador não acha que eles têm razão?
F.F. – Baixo, eu sou um cara que sou amigo deles. Então, eu converso com eles e eles me contam coisas. Eu não vou atrás, eles me contam. Sou apenas um arquivo.

Brasileiros – Eduardo Galeano, Chico Buarque, Carlinhos Vergueiro e Diogo Nogueira, entre tantos outros, queriam jogar futebol e foram para a arte. Você acha que a arte dos pés tem um pouco a ver com a arte da música e da escrita?
F.F. – Não sei, Baixo. Mas sei que eu queria ser jogador de futebol. Quando cheguei de Sergipe para fazer Direito no Largo São Francisco, em São Paulo, fui morar na Rua Turiassu, conhece? Morava bem em frente ao campo do Palmeiras. Aí, meus vizinhos, Valter e Roberto Mesquita, dois irmãos que eram juvenis do São Paulo, me falaram que haveria “peneira” no Palmeiras. Eu fui e, rapaz, quem coordenava essa peneira era um cara que chamava Og Moreira (o primeiro negro a jogar no Palmeiras). Tinha sido um meio campo famoso, já aposentado. Final do teste, ele olhou para mim e disse: “Volta na quinta-feira”. Fiquei contente à beça, fui para casa e, muito eufórico, contei para minha mãe, que pôs as mãos na cabeça e disse: “Filho, pelo amor de Deus, não quero isso pra você. Quero você com o canudo de advogado”. E aí a carreira de futebol, em tese, parou aí, porque eu continuei sonhando com ela. (Fernando Faro, aos seis anos de idade perdeu o pai em uma pelada de futebol, ele bateu a cabeça com outro jogador e faleceu em seguida).

Brasileiros – Não se arrepende?
F.F. – Não sei se me arrependo. Sei que fundamos um timezinho lá, Brasiliano, e aí a gente saía pelos campinhos todo domingo. Eu era meia esquerda e torcia para o Palmeiras. Imagine como foi difícil.

Brasileiros – Pelo que sabemos, você torce para o Santos.
F.F. – É verdade, Baixo, mas na época torcia para o Palmeiras.

Brasileiros – E o que fez você mudar de time?
F.F. – Baixo, o Palmeiras inventou de se desfazer de jogadores importantes e se desfez do Jair da Rosa Pinto, o Jajá Barra Mansa, meu grande ídolo. Aí, fui junto com ele. Passei a torcer pelo Santos. Isso foi lá por 1955, antes do Pelé. O Santos montou um belo time. Foi campeão e tudo.

Brasileiros – Não se arrependeu de ter mudado?
F.F. – Não.

Brasileiros – E a faculdade de Direito?
F.F. – Baixo, fiquei lá uns três anos. No terceiro, comecei olhar aquelas coisas de mármore, frias, as escadas… Eu disse para mim mesmo: “Pô, o que eu estou fazendo aqui?”. Saí e fui trabalhar em jornal. Minha mãe ficou muito chateada, mas…

Brasileiros – Você falou: “Nem para mim nem para senhora. Não pude ser jogador de futebol, também não vou ser advogado. Tá um a um”.
F.F. – É verdade, mas o futebol continuou na minha vida. Joguei muito com e contra o Chico Buarque. A gente jogava no Namorados da Noite, que tinha o Toquinho, o Carlinhos Vergueiro, contra o Politheama, time do Chico. Colocávamos as bandeiras dos dois times na beirada do gramado… Eu me lembro de uma ocasião que eu estava jogando e ganhando. O Chico estava caindo pela esquerda e eu marcando. Aí, lá pelas tantas, o Chico perguntou para o juiz quanto tempo faltava. Faltavam cinco minutos. O Chico manda prorrogar para mais cinco. Marcamos mais dois gols contra ele. No dia seguinte, eu passo ali pelo campinho e pergunto ao Severino, o grande zelador do Centro Recreativo Vinicius de Moraes, sobre a bandeira do Namorados, que tinha sumido. “Seu Chico mandou tirar.” Pedi para ele colocar de novo, e o Severino respondeu: “Seu Chico mandou queimar”.

Brasileiros – Quem são seus ídolos na música?
F.F. – Ah, Baixo, tanta gente… Eu começo com Vinicius e depois o Chico, Toquinho, Paulinho da Viola, Elis, o João… O João Gilberto, no programa que eu fiz com ele, chegou para mim e pediu que entrevistasse o Raimundo Olavo, que era um alfaiate lá do Norte que veio para cá e fez umas músicas legais até, por exemplo, Normélia. Você conhece? Eu fiz o programa com ele. O programa que eu fiz com o João foi incrível. De repente, no meio do programa, o João parou e falou: “Maestro, por favor, o senhor está com raiva de alguém?”. O maestro negou. “Então, por que pôs as cordas e os sopros juntos?”.

Brasileiros – Como era a convivência com o Vinicius?
F.F. – Ah, Baixo, o Vinicius era um cara… Era pai, irmão, amigo, era tudo. Era demais de amigo. Lembro muito também da Elis. Um dia, ela chegou e disse que queria que eu a dirigisse em um show, coisinha simples. Eu disse: “Pô Elis, eu não vou fazer uma coisinha simples com você”. Era no Canecão paulista, que tinha muita coluna, então o público não via direito o palco. Aí, eu inventei um negócio: fazer como se fosse uma coisa de televisão. Foi aquele show em que ela iniciava cantando Vivendo e Aprendendo a Jogar, do Guilherme Arantes. Sei que ia começar o show. E a Elis não estava bem, tinha brigado com o Cesar Camargo Mariano. Cheguei para Sueli, que era minha assistente, e pedi para chamar os músicos para afinarem os instrumentos e depois pedi: “Vá agora chamar a estrela”. A Elis chegou e eu disse assim: “Baixa, grita a beça, para tirar todos os demônios”. Enquanto os músicos afinavam, Elis gritava. Acho que no disco até tem os gritos dela. Quando terminou o show, ela chegou e se jogou do palco em cima de mim. Eu caí no chão e ela em cima, gritando: “Nós matamos eles, Baixo! Nós matamos eles, Baixo!”. Eu não sei quem era… Acho que eram os demônios.

Brasileiros – E a MPB hoje, qual a sua opinião?
F.F. – Baixo, o negócio de gravação, de música, está meio esquisito.


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