Impeachment, Lava Jato, Moro, STF: erros e acertos

O juritsta Wálter Fanganiello Maierovitch analisa historicamente o momento atual do País. Foto: Olga Vlahou
O juritsta Wálter Fanganiello Maierovitch analisa historicamente o momento atual do País. Foto: Olga Vlahou


Foram oito constituições,
 todas consideradas democráticas. No entanto, “entre nós, o povo não comanda nem controla os mandatos de seus representantes”. Mais do que isso: desde a Constituição de 1891, “os pilares básicos da República foram abalados”. A afirmação é do jurista Wálter Fanganiello Maierovitch, 68 anos, professor de Direito e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Para ele, que é membro do Instituto Pimenta Bueno de Altos Estudos de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, conferencista e Cavaliere del Merito della Repubblica Italiana por outorga do presidente Oscar Luigi Scalfaro, “a falta de educação à legalidade democrática está a produzir intolerância, abuso, violência e irracionalidade”. O popular Fla-Flu. Maierovich, que foi professor visitante da Universidade de Georgetown (Washington) e secretário nacional Antidrogas do governo Fernando Henrique Cardoso, também fala da Lava Jato. Defende e critica a operação, e explica por que ela não pode ser confundida com a Mãos Limpas, ocorrida na Itália no início dos anos 1990. Acrescenta que o juiz Sergio Moro não está em busca de promoção política. “Ele já teve projeção no caso Banestado e nunca deixou a magistratura. Parece um juiz vocacionado à toga.” Sobre Teori Zavascki, ministro do Supremo Tribunal Federal, o desembargador é taxativo: “É um grande jurista. Ele colocou uma pá de cal em um momento complicado da vida nacional e em face de três erros seguidos cometidos pelo magistrado Moro”.

Política e intolerância
O Brasil teve oito constituições. Todas ditas democráticas, pois sempre foi conveniente o destaque a essa palavra grega “demokratia”, composta por demos (povo) e kratos (poder) e que quer dizer poder do povo. Na verdade, a democracia engloba sistemas e regimes políticos nos quais é o povo que comanda. Entre nós, o povo não comanda nem controla os mandatos dos seus representantes. No direito privado, o mandante pode cassar a procuração conferida ao procurador. No nosso direito Constitucional é tudo bem diferente.

Por outro lado, adotamos, desde a Constituição de 1891, a república como forma de governo. No entanto, de lá para cá, os pilares básicos da República foram abalados. Refiro-me aos seguintes pilares republicanos: a igualdade de todos perante a lei, a responsabilidade dos mandatários e a soberania popular.
O cidadão brasileiro encontra-se limitado à democracia representativa e os instrumentos de iniciativa popular, como, por exemplo, o plebiscito e o referendo, são raramente utilizados.

De fato, a relação mandante (eleitor) e mandatário (eleito) não existe e os políticos sentem-se absolutos, sem deveres e desinibidos para migrar de partidos políticos, cujos programas são genéricos, quase todos iguais e sempre declarando-se a favor do povo, do desenvolvimento, da paz, da justiça social.
Em resumo, nunca cogitamos do recall, ou seja, a retomada, fixados pequenos distritos, do mandato do representante pelos representados. Agora e em plena crise, muitos pregam pelo recall como substituto ideal do impeachment. Atenção: não existe em nenhum país recall para presidente da República.

A propósito, o recall partiu de três experiências: EUA, Confederação Helvética e União Soviética. Nos EUA, os casos mais rumorosos foram o do governador da Califórnia – substituído, em face do recall e nova eleição, pelo ator Arnold Schwarzenegger – e o do governador do estado de Oregon, em recall de 1921. Ressalte-se: o direito eleitoral norte-americano não contempla recall para presidente da República, senador e deputado federal. Na Suíça, o recall é largamente implantado nos cantões, ou melhor, empregado para remover vencedores de eleições administrativas cantonais.

A terceira experiência tem matriz socialista-leninista e estava nas constituições soviéticas de 1936 e 1977. Lênin destacou – a respeito do recall – não poder um regime ser democrático se não reconhece o direito dos eleitores de revogar os mandatos dos eleitos.

Com efeito. Quando a cleptocracia avança, criminosos poderosos e potentes atuam parasitariamente a sugar o Estado nacional, o governo presidencial não acerta, a economia despenca, o “PIB” fica anêmico e o desemprego avança, torna-se legítimo e justo o protesto do cidadão, mas de maneira civilizada.
Nessa quadra da vida política brasileira, a falta de educação à legalidade democrática está a produzir intolerância, abuso, violência e irracionalidade. No popular, clima de Fla-Flu.

Impeachment e legitimidade
O impeachment nasceu na Inglaterra, em 1376, e virou instituto jurídico adotado pela Common Law. Esse remédio surgiu para combater a incompetência e a corrupção no reinado de Eduardo III. Os suspeitos eram os ministros régios e Alice Perrers, amante do rei e proprietária de terras. A decisão consagradora do impeachment foi do Parlamento, onde esse instrumento foi elaborado.

No século XVIII, o impeachment ingressou nos EUA pela Constituição da Filadélfia de 1787. Na nossa Constituição de 1988, o impeachment contra o chefe de Estado e de governo ocorre quando, em devido processo, se consuma crime de responsabilidade, tipificado na Constituição.

O rito de impeachment, por não ter o Legislativo feito a legislação determinada pela Constituição de 1988, acabou ditado pelo Supremo Tribunal Federal, com adequação a uma lei de 1950 e levado em conta o aplicado no julgamento Collor de Mello.

Um juiz criminal, à luz de uma acusação tipificada no Código Penal, realiza a adequação dos fatos ao tipo e verifica se presentes os elementos subjetivos, ou seja, o dolo e a culpa. Mais ainda, o juiz tem livre convencimento condicionado. Ou melhor, na sentença tem de dar as razões do seu convencimento e sempre à luz da prova existente nos autos.
O julgamento do impeachment é político e não técnico-jurídico. Dessa maneira, o parlamentar pode – sem necessidade de motivar a sua decisão –, e na base do “sim” ou “não”, admitir ou não o processamento do pedido de impeachment (Câmara), receber a denúncia (Senado) e julgar (senador). Com o recebimento da denúncia pelo Senado, a presidente é afastada por 180 dias. A condução do julgamento fica a cargo do presidente do STF, convocado por um Senado transformado em Corte política. Por ter expressa previsão constitucional, o impeachment é legítimo.

Particularmente, não me agrada uma decisão política que pode deixar de lado a adequação típica. O Senado, dado o nihil obstat (permissão) da Câmara, decide com base na conveniência e na oportunidade.

O governo Dilma não quis provocar o STF, por ação adequada, acerca da existência de fato típico, as tais pedaladas. Sabe-se que, em crimes comuns, um inquérito ou uma ação atípica pode ser trancada: imagine-se alguém acusado por crime não tipificado em lei. Mas, como o STF poderia afirmar a existência, em tese, de conduta típica, o governo Dilma entendeu, como melhor estratégia, silenciar, e o impeachment prossegue.

A Lava Jato
A Operação Lava Jato apura desvios criminosos na Petrobras. As apurações e os processos atendem ao princípio maior da Justiça criminal, ou seja, de não deixar impunes os crimes e não punir os inocentes.

Como instrumento de busca de autoria e comprovação da materialidade delitiva, a Lava Jato mostrou-se eficiente. A atuação dos seus agentes dentro da legalidade e as decisões judiciais incidentais, em especial buscas e decretações de prisões temporárias e preventivas, foram minimamente reformadas em face do nosso sistema processual, que admite reexame por outro órgão judiciário.
A sinergia do “pool federal de Curitiba”, entre a Polícia Federal, Receita e Ministério Público Federal de primeira instância, é digna de elogios, em especial pelo fato, durante anos, de as instituições se trancarem e não se auxiliarem no contraste e na repressão a crimes graves.

Pode-se assistir à prisão cautelar – mantida em todas as instâncias – e à condenação (ainda não definitiva) do maior delinquente da história do País, Marcelo Odebrecht, autor de ilícito de lesa-pátria, ou melhor, de conduta de lesa-nação brasileira.

Ainda não se pode avaliar a Lava Jato em face dos detentores do chamado foro por prerrogativa de função, uma excrescência do direito processual brasileiro. Dos “numes” da política, poucos foram denunciados pelo procurador Rodrigo Janot.
Por outro lado, fugas de notícias (vazamentos) não são aceitáveis e devem ser apuradas com rigor as responsabilidades criminais dos seus promoventes. E erros judiciais devem ser corrigidos pelas instâncias superiores. Refiro-me à condução coercitiva do ex-presidente Lula; a aceitação de prova ilícita (gravação sem autorização judicial da conversa Lula-Dilma: já não havia autorização quando captada a interlocução); e a divulgação de conversas privadas sem interesse à investigação.

A Mãos Limpas
A Operação Mãos Limpas, conduzida pelos magistrados do Ministério Público de Milão e com foco em corrupção na política partidária italiana, não deve ser confundida, como se faz a todo momento no Brasil, com a operação Antimáfia, que tramitou em Palermo e por meio do maxiprocesso idealizado pelo magistrado Giovanni Falcone, dinamitado pela Cosa Nostra siciliana.

Pela eficiência e uso de um pool de magistrados do Ministério Público, a operação Mani Pulite virou referência mundial. Essa operação levou à condenação de políticos e gerou a extinção dos partidos pela perda de apoio popular (a exceção foi o Partido Comunista, pego no caixa 2, mas com os operadores não denunciados por insuficiência de provas de autoria). Como políticos brasileiros são suspeitos e empreiteiros organizados em cartel estão acusados de superfaturamento e corrupção, daí as comparações com a Lava Jato. De se ressaltar, por ignorância à história político-institucional italiana, o equívoco existente no Brasil em se concluir que a Operação Mãos Limpas resultou num governo Berlusconi.

A Mani Pulite começou em 1992 com a prisão em flagrante de Mario Chiesa, do partido socialista e ligado ao ex-premier Bettino Craxi. Berlusconi foi eleito em 1994, quando não havia, pelo pool de Mani Pulite, nenhuma investigação a seu respeito.

Mais ainda, as suspeitas apareceram (caso de propinas a policiais da Guarda de Finanças realizadas pela Fininvest, de controle societário por Berlusconi) no curso do mandato de premier. Por isso, o primeiro governo Berlusconi durou pouquíssimo tempo, de maio de 1994 a janeiro de 1995.

De 1995 a junho de 2001, governos de centro-esquerda governaram a Itália. Berlusconi, com a esquerda dividida, retornou apenas em 2001. Caiu em 2006, substituído pelo governo Prodi (2006 a 2008). O terceiro governo Berlusconi, com a Operação Mãos Limpas exaurida em 2005, começou em maio de 2008 e findou em novembro de 2011.

Lógico, a Operação Mãos Limpas é muito semelhante à Lava Jato na fase pré-processual. Na Itália e em primeira instância o julgamento é colegiado, no caso, pelo Tribunal de Milão e recurso ao Tribunal de Apelação de Milão e à Corte de Cassação (equivalente do nosso STF). No Brasil, na Lava Jato e foro de Curitiba, o julgamento é monocrático, pelo juiz Sergio Moro. Por último. Grande parte da imprensa está a comparar Moro com Di Pietro,  Davigo e Colombo, que eram membros do “pool” comandado pelo procurador-geral de Milão, Francesco Saverio Borrelli. Nada mais errado, pois Di Pietro, Davigo e Colombo atuaram como promotores, e não como juízes: na Itália, não se prestigiou Montesquieu e não existe Poder Judiciário (existe, sim, independência e garantia aos magistrados). A magistratura é única, ou seja, são magistrados com funções diferentes: judicantes ou acusatórias. Pode-se mudar de função, transferindo-se para outra região e sem possibilidade de autuar em processos onde se teve a função acusatória.

Balanço e prescrições
Sobre balanço da Operação Mãos Limpas, duas coisas. Num primeiro momento, teve total apoio da população. Depois de 1994, seu segundo ano, o cidadão italiano cansou, pois a operação passou a reprimir não mais os figurões. De Mani Pulite passou-se, de 2001 a 2002, à fase de Mani Mozzate (cortadas), como observaram Gianni Barbacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio.

Num balanço, foram cinco mil investigados, 3.200 denunciados (acusados), 1.254 condenados e 429 absolvidos. Por incrível que possa parecer, 424 decretações de prescrições: um em cada quatro réus foi alcançado pela prescrição.

O juiz e a política
Não vejo indicativo de Moro estar em busca de promoção para futuro ingresso na política. Ele já teve muita projeção no caso do Banestato e nunca deixou a magistratura. Parece um juiz vocacionado à toga. Fora isso, é incorreta a comparação com Di Pietro, que era promotor. No Brasil, de Ibsen Pinheiro ao governador paulista Fleury, sem esquecer de Demóstenes Torres e do atual governador de Mato Grosso, Pedro Taques, a atração para a política se dá entre membros do Ministério Público, e não entre juízes. Daí haver sido salutar dispositivo de proibição constitucional para ingresso na política. A exceção constitucional privilegia os membros do Ministério Público com ingresso na carreira pós-promulgação da Constituição de 1988. 

Para um juiz, como Moro, trocar de panos exigiria exoneração ou aposentadoria.
Por outro lado, a carreira política de Di Pietro foi desastrosa. Ele criou o partido Itália dos Valores e na última eleição parlamentar ninguém do seu partido foi eleito. Di Pietro, na política, fracassou e não vingou o seu discurso de salvador da pátria. Hoje, tomou-lhe o discurso o humorista Beppe Grilo, criador do Movimento Cinco Estrelas.

Zavascki e imparcialidade
O ministro Teori Zavascki é um grande jurista e, desde o tempo de desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, com passagem pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sempre foi considerado, além de profundo conhecedor do Direito, um equilibrado e sério juiz.

No caso da avocação dos processos de Lula para posteriormente analisar e decidir, Teori agiu, como se diz no direito romano, como “bônus pater familiae”, ou melhor, um juiz cumpridor, em situações delicadas e com temperança, do seu dever funcional. Ele colocou, na hora certa, uma pá de cal em momento complicado da vida nacional e em face de três erros seguidos cometidos pelo magistrado Moro.

Por enquanto, é aguardada a sua decisão sobre, no caso Lula, manter ou não o foro privilegiado. Por certo, vai aguardar a solução do mandado de segurança aforado pelo PSDB e PPS, onde o ministro Gilmar Mendes, sem dar-se por suspeito de parcialidade em razão de prejulgamento, concedeu liminar, imiscuindo-se em atribuição exclusiva da presidente da República, para suspender a nomeação e a posse de Lula no cargo de ministro do governo Dilma. 


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