Justiça seletiva ou amadurecimento institucional?

O segundo mandato da presidente Dilmatem enfrentado a dita “tempestade perfeita”: a conjugação de crises em áreas adjacentes que pode ameaçar o curso de seu governo. Para além da incerteza econômica e da instabilidade política, motivos já suficientes para desestabilizar qualquer coalizão governista, a confusão da cena é ainda agravada por um componente de insegurança jurídica. Para isso, concorre uma atuação sem precedentes dos órgãos de controle, de cuja atuação pode depender a sobrevida de um governo recém-nascido. E é esse ineditismo que torna difícil as análises e as perspectivas. Serão esses novos casos de justiça seletiva, cujo rigor se perderá pelo caminho? Ou são indicadores de um amadurecimento institucional, capaz de promover novos padrões de comportamento na política brasileira? Há duas narrativas em curso.

Céticos e governistas têm convergido para apontar o que consideram excessos no processamento das instâncias de controle. Sugerem, por exemplo, que a prisão preventiva foi banalizada na tramitação da “Operação Lava Jato”, e passou a ser um elemento de barganha para induzir a celebração de delações premiadas. Se estiverem corretos, o passo dado não segue a direção correta. O processo penal envolve direitos muito importantes para serem objeto da discricionariedade pública. Ainda nessa narrativa, o risco da satisfação com as manchetes de hoje é o de se esquecer que o direito deve ser construído com alteridade, um jeito mais elegante de apresentar o dito popular “pau que bate em Chico, bate em Francisco”. Terá valido a pena baratear o custo da prisão como meio de promover futuras investigações?

Céticos e governistas veem também nos sinais de uma possível atuação rigorosa do Tribunal de Contas da União e do Tribunal Superior Eleitoral indícios de uma reiteração do Estado de Direito apenas para os inimigos. Mantida a tendência indicada pelo relator, a presidente Dilma será a única em muitos anos a ter suas contas rejeitadas e isso por ter realizado operações que o próprio tribunal de contas não condenou no passado. Contam ainda que o Tribunal Superior Eleitoral poderá firmar uma nova jurisprudência sobre doações de campanha, estabelecendo assim que doações formalizadas podem também ser consideradas ilegais por terem resultado de ajustes interessados entre doadores e partidos. O resultado da novidade pode ser explosivo, provocando a anulação dos votos da candidatura presidencial eleita por abuso de poder econômico. Nessa narrativa, portanto, o ineditismo dos órgãos de controle é compreendido como um caso de justiçamento seletivo – vale para esse caso, mas não se repetirá. Será?

A esta versão justapõe-se outra, que conta com o apreço de otimistas e opositores do governo. Segundo essa leitura, o que se está assistindo no país é a configuração de uma nova etapa da longa e penosa afirmação do Estado de Direito. O argumento protagonista dessa interpretação dos fatos é o de que o mau funcionamento das instâncias de controle no passado não torna um ato ilícito em um ato lícito. Em outros termos, assinalam otimistas e opositores, se sempre se fez o errado, o errado não vira certo por decurso de prazo, o que seria uma espécie de usucapião da ilegalidade. Se o financiamento de campanha conta com relações nebulosas entre partidos e contratos públicos, isso não habilita a existência de superfaturamentos para permitir o financiamento eleitoral. Se o tribunal de contas não exerceu a contento seu papel de órgão de assessoramento na avaliação das contas passadas, as operações de crédito dos bancos públicos com o Tesouro, que são vedadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, não passaram a ser por isso toleráveis. O caminho, dizem, aponta para um amadurecimento das instituições e para a condenação de práticas e costumes inadequados. Será?

Congresso - Foto: Gabriela Korossy/Fotos Públicas
Congresso – Foto: Gabriela Korossy/Fotos Públicas

 

Não é possível ainda se estabelecer com clareza qual das narrativas fará a história. Países em desenvolvimento têm como traço peculiar a inconsistência na aplicação do direito. A universalidade e a impessoalidade na aplicação das leis, que são atributos indispensáveis para o Estado de Direito, costumam ganhar traços idiossincráticos nesses ambientes. A discricionariedade dos governos, sem um satisfatório controle democrático, costuma ser a regra. A justiça orienta-se mais pelas particularidades dos casos do que pela formação e pela aplicação de precedentes. O resultado é uma dificuldade de se forjar uma governança pelas instituições, em que os elementos objetivos imponham-se sobre as preferências e opções subjetivas. Mantém-se assim uma dialética indesejável em que o passado e o futuro se alimentam reciprocamente: o atraso e o moderno são constitutivos de um mesmo arranjo, que se quer republicano, mas se sustenta no patriarcado patrimonialista. A essa composição, soma-se ainda a desigualdade que, por fragmentar a sociedade em grupos empoderados e vulneráveis, costuma trazer o compadrio para o funcionamento das instituições. Não é por acaso que uma frase célebre da política brasileira é atribuída não a um, mas a dois ex-presidentes. “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei” pertenceria simultaneamente a Arthur Bernardes e a Getúlio Vargas.

É no ambiente desse Estado de Direito em longa rota de consolidação que se deve olhar para os desdobramentos recentes e futuros da conjuntura jurídica. Nesse percurso, talvez convenha buscar uma posição equidistante entre os céticos e os otimistas. Nem se está violando o Estado de Direito ao se fazer cumprir rigorosamente a regra de forma inédita, nem esse rigor inédito é garantia de um amadurecimento institucional. É plausível que condenações ocorram pela primeira vez e assim desequilibrem os termos da competição política e empresarial, sobretudo em um ambiente que conta com dificuldades para afirmar a institucionalidade. Se for esse o caso, o ineditismo da justiça é bem-vindo. Se, no entanto, o rigor for arrefecido, tão logo se apaguem os refletores, teremos vivido uma ode fora de tempo aos termos da Velha República. Teremos reeditado o direito do inimigo e a rançosa combinação de uma república sempre apoiada no patriarcado autoritário do velho clube de amigos. I

*Professor na Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas – FGV Direito SP.


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