Mais de dois metros de justiça (muita justiça)

Brasileiros – Quais os obstáculos para o Brasil ficar em harmonia com o seu passado recente?
Paulo Abrão –
Falta superar o ambiente de justificação da violência. Eram dois os principais desafios a serem enfrentados. Superamos o primeiro, relacionado com a política de esquecimento, que entendia como impertinente enfrentar as mazelas do passado. Preferia negar que os centros de tortura existiram e que havia um aparato direcionado à destruição do outro. Consequentemente, não reconhecia as vítimas. E, por detrás delas, existem os perpetradores da violência. Sem reconhecer as vítimas, nunca se alcançará os violadores.

Brasileiros – E o outro desafio?
Paulo Abrão –
Enfrentar o discurso que justifica a violência. Diz que a violência aconteceu, mas que a ditadura foi um mal necessário. Que a violência ocorreu como resposta à agressividade da resistência ou porque era importante impedir a expansão do comunismo no Brasil. Esse discurso procura legitimar as arbitrariedades. Superar a justificação da violência é bem mais difícil do que a negação da violência.

Brasileiros – Por quê?
Paulo Abrão –
Porque envolve o enfrentamento dos projetos de poder que estavam em disputa em 1964. E ainda estão em disputa. O que tem feito com que uma versão de condenação à ditadura seja gradativamente vitoriosa é o fato de que nesses últimos anos nós vivenciamos governos democráticos de esquerda. De certa forma, eles acabaram por implementar projetos apontados nas reformas de base do presidente João Goulart.

Brasileiros – Que projetos?
Paulo Abrão –
As reformas sociais, a democratização da riqueza, o aprofundamento da reforma agrária, a significativa elevação da condição social da maioria da população.

Brasileiros – Quantos processos a comissão já analisou?  Ou o termo é julgar?
Paulo Abrão –
Nós não julgamos ninguém. A anistia é um processo de reconhecimento de direitos. Não existem duas partes oponentes em disputa. Existe o Estado diante da pessoa que alega a sua história, fatos relacionados a atos de exceção, como perseguições políticas, prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos, mortes, compelimento à clandestinidade, ao exílio.

Brasileiros – São quantos os casos analisados?
Paulo Abrão –
Desde que foi instituída, em 2001, a comissão já apreciou quase 60 mil casos. Esse dado confronta a leitura imposta por muito tempo de que a ditadura no Brasil foi uma “ditabranda”, de que, comparativamente a outros países, ela teria sido menos violenta. Essa é uma falácia porque ignora que cada regime autoritário tem as suas próprias características repressivas. E a ditadura brasileira utilizou-se muito do mecanismo da repressão econômica. Uma ditadura não se mede pela pilha de corpos que ela é capaz de produzir ao longo do tempo, mas sim pela cultura autoritária que ela projeta para a frente. Nesses termos, me parece que a ditadura brasileira foi muito violenta porque temos mais dificuldade para superar a cultura do medo e promover o acerto de contas com o passado.

Brasileiros – Dos 60 mil pedidos de anistia, quantos foram atendidos?
Paulo Abrão –
Um terço foi indeferido. Dois terços foram deferidos, metade deles sem nenhum tipo de reparação econômica. O deferimento se deu apenas com a declaração da condição de anistiado político. Esse gesto tem uma carga simbólica profunda.

Brasileiros – Qual a causa dos indeferimentos?
Paulo Abrão –
Os motivos são distintos, mas o principal deles é que a pessoa não consegue comprovar a alegação de perseguição. O próprio Estado limitou a possibilidade de determinados arquivos serem alcançados. É claro que a Comissão da Anistia tem uma postura ativa na construção das alegações. Procura entrecruzar os casos. Somos 24 pessoas e deliberamos como órgão colegiado. Os indeferimentos também se dão por ausência de enquadramento legal ou porque, do ponto de vista do mérito, não há de se falar em reparação, como é o caso do cabo Anselmo (o ex-militar Anselmo José dos Santos, que chegou a ser preso logo após o golpe de 1964. Depois, revelou-se delator, sendo responsável pela morte de vários militantes de esquerda).

Brasileiros – Como foi recebido o pedido do cabo Anselmo?
Paulo Abrão –
O cabo Anselmo sustentava que em parte da vida tinha sido atingido pela ditadura e que somente em outro momento ele foi colaborador da repressão. Seria impensável que o Estado democrático premiasse alguém que passou a colaborar com o regime de opressão. Não bastassem as dúvidas em torno do fato de ele ser ou não um agente infiltrado desde o início.

Brasileiros – Quanto aos perseguidos políticos, não faltam críticas ao pagamento de indenização, que muitos chamam de Bolsa Ditadura.
Paulo Abrão –
Esse é um termo pejorativo. O Estado tem o dever de tentar minorar as perdas materiais e morais que as pessoas tiveram ao longo da vida. Além dos nossos dois inimigos principais, o negacionismo e a justificação da violência, há um processo de estigmatização da reparação às vítimas, tentando identificá-las em uma perspectiva economicista.

Brasileiros – A reação vem das mesmas forças que promoveram a repressão?
Paulo Abrão –
Em parte sim, mas também de setores que não têm interesse em trazer à tona toda a esfera de colaboração civil com a ditadura militar. Abrir esse baú de histórias é reconhecer que nenhuma ditadura se sustenta por 21 anos pela simples força das armas. Houve uma adesão social à ditadura, em diferentes segmentos. No meio empresarial, no meio jornalístico, no meio cultural. Não devemos ter medo de enfrentar o passado. Esse tem de ser um processo de autocrítica, onde cada pessoa reconheça a sua participação. Somente se nos apropriarmos dessa história seremos capazes de construir os mecanismos para a não repetição no futuro.

Brasileiros – Isso envolve mudança na concepção da Lei de Anistia?
Paulo Abrão –
Na década de 1970, a anistia nasceu com duas vocações. Uma foi a anistia concebida como impunidade, que acabou sendo aquela aprovada no Congresso Nacional, por 210 votos a 205. Por cinco votos, ela derrotou o projeto de anistia ampla, geral e irrestrita que as ruas demandavam. Ao mesmo tempo, as ruas conseguiram impor à ditadura alguma anistia. Se dependesse do governo militar, não haveria anistia nenhuma. Os dois sentidos de anistia projetaram reflexos ao longo do tempo.

Brasileiros – Que tipo de reflexo?
Paulo Abrão –
A anistia como impunidade e esquecimento fez com que as instituições jurídicas não abrigassem quaisquer tentativas de abertura de processos judiciais de identificação e responsabilização dos violadores dos direitos humanos. Já a anistia social gerou efeitos quando se transformou ao longo do tempo em uma fórmula de reparação, de reconhecimento por parte do Estado das violências que foram constituídas.

Brasileiros – Mas nos meios jurídicos o que vale é a anistia da ditadura, com raras exceções.
Paulo Abrão –
Na Comissão de Anistia, aproximamos esse conceito à condição social, até porque a comissão é uma instituição do Estado. Tem a responsabilidade de promover a reparação, que se faz pela memória, pela dimensão econômica, pela restauração da verdade. A reparação também se constrói pela busca da justiça. O conceito de anistia está em disputa. Tanto que a Corte Interamericana de Direitos Humanos relativizou a abrangência da anistia de 1979 para os crimes de lesa-humanidade. E o Ministério Público Federal tem também procurado abrir ações civis públicas, as primeiras delas exitosas.

Brasileiro – Quais?
Paulo Abrão –
A ação da família Telles, no caso do Brilhante Ustra (o Tribunal da Justiça de São Paulo responsabilizou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra pelas torturas de três integrantes da família nos anos 1970). A Justiça também recepcionou um pedido de investigação criminal feito pelo Ministério Público sobre o Araguaia.

Brasileiros – O combate à guerrilha do Araguaia como um todo?
Paulo Abrão –
Os militares da reserva Lício Maciel e Sebastião Curió. Foi iniciativa do Ministério Público, que criou dois grupos de trabalho. Um chamado Memória e Verdade, para acompanhar processos de justiça de transição e as políticas públicas que o Estado tem de empreender nessa matéria. O segundo, chamado Justiça de Transição, tem elaborado peças propondo ações civis e penais aos perpetradores de crimes de lesa-humanidade.

Brasileiros – Na sua opinião, quem torturou e matou no passado deve ser responsabilizado?
Paulo Abrão –
Os crimes de lesa-humanidade são impassíveis de anistia e são imprescritíveis. Há jurisprudência internacional, um legado ético dos tribunais de Nuremberg e de Tóquio (que julgaram crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial). A razão é que, se esses crimes se generalizarem, estará em risco a própria existência da humanidade. Os crimes de lesa-humanidade podem ser apurados a qualquer tempo.

Brasileiros – Entre os casos apreciados pela comissão, algum o sensibilizou de maneira especial?
Paulo Abrão –
Muitos, mas não podemos medir a intensidade das dores. Alguns casos alcançam uma amplitude maior. É a situação dos camponeses do Araguaia. Uma região muito pobre, com cidadãos muito humildes. A maioria deles não teve acesso a condições básicas de direitos. Eles sofreram uma violência sem ao certo compreender o que estava acontecendo.

Brasileiros – Foi uma das maiores mobilizações militares do Brasil.
Paulo Abrão –
Para dizimar 70 pessoas. Exterminar essas vidas. Esse era o propósito deliberado, já reconhecido pelo conjunto dos processos da Comissão de Anistia.

Brasileiros – Agentes do Estado, como o major Curió, têm documentação sobre isso. Eles não podem ser convocados para entregar esses documentos?
Paulo Abrão –
Parte dos arquivos da ditadura pode estar na mão de particulares. Essa situação configura apropriação indevida de documentos públicos. É evidente que se um cidadão afirmar que tem papéis públicos, existem mecanismos para o Ministério Público propor a reapropriação dessa documentação. O difícil é a pessoa assumir que tem essa documentação.

Brasileiros – O major Curió já assumiu.
Paulo Abrão –
Ele de fato já mostrou alguns documentos. Agora precisamos fazer um juízo crítico em torno da documentação produzida pelo Estado repressor. Eles utilizam a terminologia da ideologia dominante, as versões mentirosas, para justificar a violência. Temos feito um debate sobre a importância de darmos mais atenção aos arquivos das vítimas.

Brasileiros – Nesse caso não há documentos.
Paulo Abrão –
Tem de ser pelo exercício da memória. Naquela época as pessoas eram obrigadas a destruir os documentos para se proteger. Então, terá de ser feito um juízo de valor.

Brasileiros – Dos dois lados, não?
Paulo Abrão –
A construção da memória vai ser resultado da confrontação dessas duas formas de resgatar o passado. As fontes documentais e as fontes de história oral. Eu particularmente não dou o mesmo nível de credibilidade às duas narrativas. O direito à verdade de toda a sociedade depende da disposição das vítimas em rever os seus traumas. E ainda ter de enfrentar todas as críticas. Por isso acabamos de criar o programa Clínicas do Testemunho, uma nova forma de atuar da Comissão de Anistia para suprir a lacuna da reparação psicológica.

Brasileiros – Nos anos de chumbo, quase dois mil réus denunciaram nos tribunais que haviam sofrido tortura. Nada foi feito. A omissão foi só dos juízes militares?
Paulo Abrão –
O Brasil tem outra característica histórica. Aqui houve um processo de tentativa de legalização do autoritarismo, pelos atos institucionais, pelo corpo normativo que amparava o uso arbitrário da força. Alguns juízes disseram não. E se recusaram a aplicar a legalidade autoritária. Três ministros do Supremo foram cassados quando passaram a rejeitar a aplicação dos atos institucionais e a negação dos habeas corpus.

Brasileiros – Hoje, há um esforço do Executivo e de parte do Legislativo para a reparação. E o Judiciário?
Paulo Abrão –
O poder Judiciário tem de participar do processo de acerto de contas com o passado. Isso pode ser feito por reconhecimento de ações civis, pela criação de uma jurisprudência para reconhecer os direitos de resistência das vítimas ou em torno dos crimes de desaparecimento forçado. A justiça de reparação oferece a oportunidade de as instituições se transformarem por dentro só ocorre quando elas são capazes de reconhecer publicamente seus erros.

Brasileiros – Há algum movimento nesse sentido no Judiciário?
Paulo Abrão –
Tivemos duas decisões alvissareiras. A primeira do foro de São Paulo, que determinou a retificação do atestado de óbito de João Batista Drummond (antigo dirigente do PCdoB) para desfazer a farsa de que ele teria morrido por atropelamento. O juiz determinou que no registro constasse que ele foi morto sob tortura nas dependências do II Exército. O juiz não escreveu maus-tratos, abusos generalizados. Ele deu nome às coisas como elas são. Outra decisão importante foi a extradição do coronel Cordero (o militar uruguaio Juan Manuel Cordero, acusado na Argentina de 11 desaparecimentos e do sequestro de um bebê).

Brasileiros – Quais as consequências dessa decisão?
Paulo Abrão –
Com essa extradição, o Supremo assentou uma jurisprudência de que os crimes de desaparecimento político equivalem a crimes permanentes. Estão, portanto, sendo cometidos até hoje. E poderiam ser apurados, segundo a nossa ordem jurídica atual. A minha aposta é que isso abre a possibilidade de que pelo menos os desaparecimentos forçados possam vir a ser investigados criminalmente. No Brasil, é muito difícil uma experiência similar à da Argentina, de abertura generalizada de ações de responsabilização. Lá, dos generais ao agente torturador, todos têm sido responsabilizados.

Brasileiros – Por que no Brasil é diferente?
Paulo Abrão –
Coexistem no ordenamento jurídico brasileiro duas sentenças. Uma do Supremo, que em 2010 decidiu que a lei de anistia de 1979 está de acordo com a constituição democrática de hoje. A outra sentença é a da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relativa ao Araguaia, dizendo que a lei de anistia não pode servir de obstáculo ao reconhecimento do direito das vítimas para os crimes de lesa-humanidade.

Brasileiros – O Supremo pode mudar de posição?
Paulo Abrão –
Pode, por razões muito objetivas. A OAB interpôs embargos declaratórios, uma espécie de solicitação para que o Supremo elucide a compatibilidade da decisão dele com a da corte internacional. Também pediu para elucidar se os crimes de desaparecimentos forçados estão alcançados pela decisão de 2010. Paralelamente, temos as novas iniciativas do Ministério Público. Depois que o primeiro juiz resolver condenar penalmente algum agente da repressão, o Supremo terá de se posicionar. E existe a possibilidade de ajustamento das duas sentenças. Elas têm um ponto em comum, que se dá em torno dos crimes de desaparecimento forçado.

Brasileiros – No Brasil, são quantos os desaparecidos? Ainda há esperança de encontrar seus restos mortais?
Paulo Abrão –
Oficialmente, são 158 casos. A localização das ossadas é difícil. Ao mesmo tempo que o trabalho da Comissão da Verdade potencializa essa temática e tem poderes efetivos de promover novas investigações, eu tenho pouca expectativa de que os militares que participaram da repressão venham a colaborar. Acredito que, sem a participação de alguns deles, parte dessas ossadas não possam mais ser encontradas. Por outro lado, como o assunto foi mantido por muito tempo sob um espectro do silêncio, pode haver testemunhas. Daí a importância de se criar um ambiente nacional em favor da verdade e da memória.

Brasileiros – Essa é uma das razões das Caravanas da Anistia?
Paulo Abrão –
Criamos as Caravanas da Anistia em 2008 para enfrentar a cultura do sigilo e também para responder de forma pública às críticas economicistas à nossa agenda da transição. Realizamos as sessões de forma itinerante pelo País porque o resgate da dignidade do perseguido político tem de acontecer no local em que as perseguições contra ele ocorreram. Foi lá que ele foi estigmatizado. E, com as caravanas, o processo de reparação se qualificou. Muitas testemunhas puderam ajudar na reconstrução da verdade até então omitida. Além disso, como são realizadas em locais públicos, as caravanas ajudam a tornar conhecida essa história. Já fizemos 62.

Brasileiros – E a parceria com a Universidade de Brasília (UNB) feita recentemente? A morte do jurista Anísio Teixeira, antigo reitor da Universidade do Distrito Federal, vai ser investigada?
Paulo Abrão –
Foi uma grande surpresa. No ato de instalação da comissão da universidade, trouxeram informações de que a morte do Anísio, no poço de um elevador, em março de 1971, teria sido uma cena montada para caracterizar como acidente. A comissão da universidade vai investigar.

Brasileiros – Essas violações ficaram no passado?
Paulo Abrão –
Definitivamente não. Mesmo no ambiente democrático existem espasmos autoritários. Eles estão presentes no seio familiar, no trabalho, nas relações econômicas, políticas, educacionais, entre homens e mulheres por expressão do machismo, nos autos de resistência que justificam a violência nos dias de hoje, nas tentativas de  proibir manifestações culturais na periferia, como o funk proibidão e determinadas letras do hip hop. Estão presentes também nas tentativas de se proibir manifestações em favor de qualquer tese, como a Marcha da Maconha e a Marcha das Vadias. A cultura autoritária é muito forte no nosso País.

Brasileiros – E o escracho, o movimento de jovens que identificam de forma pública os antigos torturadores?
Paulo Abrão –
Considero como um reflexo da insatisfação com a impunidade no Brasil. É um fenômeno que pode ser explicado pela ideia de desindividualização da dor. Para que a memória seja uma arma humana contra a barbárie no futuro é necessário que a geração seguinte recepcione esse direito como dela, mesmo não tendo vivido o processo. Isso é sinal intenso de vitalidade democrática.

Brasileiros – Como atua a Secretaria Nacional de Justiça?
Paulo Abrão –
São três departamentos. Um cuida de estrangeiros, outro de recuperação de ativos e cooperação jurídica internacional. Há ainda o que trata de políticas de justiça, como classificação indicativa e tráfico de pessoas.

Brasileiros – A secretaria acaba de recuperar no exterior R$ 2,2 milhões, desviados no chamado escândalo do Banestado. Foi um episódio isolado?
Paulo Abrão –
Fazemos o contato com outros países para que eles possam bloquear recursos com origem na corrupção.  Posteriormente, trabalhamos para a repatriação. Somente esse ano repatriamos R$ 16 milhões. Isso é mais do que os primeiros dez anos inteiros de funcionamento do departamento, que havia repatriado R$ 4 milhões.

Brasileiros – E como a secretaria lida com a imigração?
Paulo Abrão –
Trabalhamos hoje com a proposta de criarmos uma lei de migração para o Brasil, para internalizar preceitos importantes, como o direito humano à migração. As pessoas têm o direito legítimo de escolher o local onde elas querem realizar o seu projeto de vida. Queremos também reconhecer o direito humano à regularização migratória. Se não regularizarmos o migrante no território nacional, estamos jogando-o à marginalização, ambiente propício para ele ser instrumentalizado por organizações criminosas.

Brasileiros – Não pode ocorrer um fluxo migratório acentuado?
Paulo Abrão –
O risco de uma migração em massa é muito baixo. Desde 2009 temos acordos no Mercosul que já fixam o direito de residência temporária na nossa região. E, em comparação a outros países, o Brasil tem um grande espaço em matéria de migração. Os países centrais chegam a ter de 10 a 20% de sua população composta por migrantes.

Brasileiros – E o Brasil?
Paulo Abrão –
Temos 1,5 milhão de migrantes numa população de 200 milhões de habitantes. Não chega nem a 1% da nossa população. Somos uma nação forjada pela força da imigração. O sucesso de nosso desenvolvimento advém dessa formação cultural, onde superamos diferenças. Nesse instante em que os países centrais vivem crises, temos que saber afirmar o nosso modelo. E mostrar que é que possível fazer diferente. Houve momentos que éramos nós, brasileiros, que tentávamos buscar melhores condições de vida em outros países. A mão de obra migrante sempre agrega valor a uma sociedade.

Brasileiros – A classificação indicativa, outra atribuição de sua secretaria, é uma espécie de censura?
Paulo Abrão –
Ela é o contrário da censura. Foi um mecanismo criado exatamente para desfazer o setor de censura que funcionava no Ministério da Justiça. Tem como premissa que o Estado em nenhuma hipótese pode interferir na produção cultural ou imprimir vetos para qualquer obra. É a possibilidade de exercício da liberdade dos pais em terem autonomia na condução da formação de seus filhos. Vale para espetáculos e diversões públicas.

Brasileiros – Como foi o pedido do deputado Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) em relação ao filme Ted?
Paulo Abrão –
O deputado achava que o filme deveria ser proibido para menores de 18 anos. Negamos o recurso dele. Temos critérios para definir o que deve ou não ser assistido por determinadas faixas etárias. É um mecanismo inteligente, criado a partir de uma ampla consulta pública, para se evitar que esses critérios fiquem à mercê do subjetivismo do governante de plantão. No caso do filme Ted, o deputado pedia que nós ascendêssemos a classificação de 16 para 18 anos.

Brasileiros – Isso porque o ursinho Ted fumava maconha?
Paulo Abrão –
O ursinho usava drogas, falava palavrão. Mas pelos critérios da classificação indicativa o filme se enquadra nos 16 anos.

Brasileiros – Uma equipe da secretaria assiste previamente aos filmes e programas de tevê?
Paulo Abrão – Nos programas da tevê aberta, as redes fazem a sua autoclassificação. Nós só atuamos de modo corretivo, a posteriori, se recebermos uma denúncia, como a do deputado, ou do Ministério Público, que faz monitoramento, por causa da proteção da criança e do adolescente. Paralelamente, mantemos um sistema de supervisão. Com o cinema é diferente. As distribuidoras remetem para nós o filme antes de ele ser exibido, e nós fazemos a classificação.

Brasileiros – A secretaria atua ainda contra o tráfico de pessoas. Parece ficção.
Paulo Abrão –
A referência à ficção é boa porque assimila uma das principais características do tráfico de pessoas. É uma modalidade criminosa em que há profunda invisibilidade das vítimas. Elas são aliciadas com a promessa de uma melhoria na condição de vida, em regiões mais desenvolvidas do Brasil ou no Exterior. Realiza a escravidão em pleno século 20. Existem situações consolidadas, como os travestis na Itália. Agora há alguns casos mais recentes de meninos jogadores de futebol e de modelos que estão sendo vítimas de tráfico de pessoas.

Brasileiros – Além do Comitê de Anistia e da Secretaria Nacional de Justiça, está sob o seu comando a Comissão Nacional para Refugiados. Como chegou a todos esses cargos?
Paulo Abrão –
No governo Luiz Inácio Lula da Silva, Tarso Genro, quando estava para assumir o Ministério da Justiça, procurava alguém com formação sólida e atuação em direitos humanos, mas que não tivesse vivenciado diretamente as disputas relacionadas à ditadura. Um assessor, que havia sido meu aluno na faculdade, me indicou. Depois, Tarso Genro saiu para ser candidato ao governo do Rio Grande do Sul e eu continuei em Brasília. Na sequência, no governo da presidenta Dilma Rousseff, o ministro José Eduardo Cardozo me convidou a permanecer. E cá estou.


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