Mulheres em construção

Muitas vezes, fala-se da mulher, do feminino, do materno, como se fossem “essências biológicas”, que se manteriam inalteradas ao longo do tempo, como se existisse uma eterna natureza feminina. Esquece-se de que tudo, que é humano, é produto do momento histórico e da cultura.

Com a inclusão da mulher no mundo do trabalho, a conquista do direito ao voto, a liberdade sexual e o controle da procriação em grande parte das sociedades ocidentais, o ideal de “mulher do lar” perdeu força. Deparamo-nos com uma existência feminina à qual é reconhecida a possibilidade de construir um destino individual. Como afirma Gilles Lipovetsky – filósofo francês, pensador do individualismo contemporâneo -, as mulheres estão, assim como os homens, entregues ao imperativo moderno de “inventar suas vidas”.

No final do século XIX, Sigmund Freud, médico vienense criador da psicanálise, atendia mulheres histéricas que sofriam de paralisias, cegueiras, afonias, dores no corpo. Ele percebeu, então, que o lugar a elas destinado era o materno, um ser-mãe que a definia como mulher e não uma mulher que podia ser mãe. O feminino ficava restrito ao espaço privado do lar, onde, em seu lugar de rainha, a mulher tinha como função principal o cuidado e a educação dos filhos. Freud reconheceu que isso justificava em parte o sofrimento dessas mulheres. Sabe-se que, já em 1908, Freud publicara no texto A Moral Sexual e o Nervosismo Moderno (1908) a afirmação de que a moral repressora presente na modernidade e seus efeitos de “sufocamento” sobre a vida sexual eram as causas principais das neuroses. Também sustentara serem as mulheres as que mais sofriam com essa moral repressora, pois a sexualidade só lhes era permitida no casamento. O prazer separado da reprodução ficava restrito à mulher vulgar.

Com quais mulheres nos deparamos na atualidade?
No mundo em que vivemos, as mulheres foram ocupando o espaço do trabalho e das decisões, conseguiram lugares de fala e, em muitos casos, independência econômica e autonomia para suas vidas. As mudanças nos lugares sociais trouxeram consigo transformações importantes no imaginário sobre o feminino. O século XX incluiu o erotismo nesse imaginário e a sensibilidade e o prazer passaram a fazer parte dele, abrindo para as mulheres a possibilidade de desfrutar da sexualidade e do corpo.

Foi o século do surgimento de métodos anticoncepcionais que permitiram separar a sexua-
lidade da procriação. Mais recentemente, as novas tecnologias trouxeram possibilidades inéditas em relação ao desejo de ter um filho. A maternidade passou a ser “um” dos possíveis caminhos da vida de uma mulher, ou seja, uma escolha.

As formas de amar e os vínculos que se estabelecem entre homens e mulheres sofreram mudanças significativas nos últimos tempos. A duração dos relacionamentos, as formas de convivência dos casais e as organizações familiares modificaram-se e, com isso, mudaram também os atributos de gênero: a mulher dócil, submissa ou deserotizada não é mais o ideal de nosso tempo. Os mitos da mulher-mãe, do amor romântico e da passividade erótica – próprios da modernidade – deram lugar a outros, como: “o corpo perfeito é sempre jovem”, “a vida é eterna”, “a ciência no lugar da religião”. As mudanças no imaginário da cultura instituíram discursos diferentes sobre a sexualidade, sobre o feminino e o masculino. Deram origem a subjetividades e sintomas diferentes, tanto na clínica, quanto no social, e introduziram mudanças na forma pela qual as mulheres têm vivido as passagens do feminino: a adolescência, a gravidez, a menopausa.

As novas fontes de “sofrimento”
Nos últimos anos, a clínica das moças mais jovens coloca-nos em contato com dois mandatos do entorno. Um deles, é ter de experimentar tudo e agora, o que leva, muitas vezes, a apagar o desejo, sepultado sob um acúmulo de objetos (droga, consumo, bebida). O outro mandato é o de não se vincular – o “não ligue” -, tendo de conviver com um excesso de excitação sem vínculo afetivo em que haja o reconhecimento mútuo. Isso leva, muitas vezes, a buscas exasperadas de “fazer corpos com contorno”, por meio de inscrições de tatuagem, piercing e cortes mutiladores.

Cuidar do corpo e, na mulher, também enfeitá-lo, é um movimento certamente importante quando faz parte do caminho do desejo e do lançar-se em direção ao outro. No entanto, em uma cultura que idolatra demasiadamente o corpo, há uma exigência do “corpo perfeito”, que acaba se transformando em verdadeiras obsessões e deixam os corpos submetidos, às vezes em exagero, às ginásticas para remodelá-los, dietas para embelezá-los e plásticas para retirar-lhes as marcas da passagem do tempo. Isso tudo se transforma em atroz exigência, fonte de sofrimento que não deixa de ser equivalente aos de outrora.

Outra fonte de sofrimento tem aparecido em situações de mulheres que postergaram o momento de ter filhos e que são surpreendidas pela impossibilidade de engravidar. São mulheres que, muito solicitadas pela exigência do mercado de trabalho, deixaram para mais tarde o projeto da maternidade, incentivadas pelo discurso midiático que lhes promete engravidar em qualquer idade – tendo como base a ideia de uma ciência com possibilidades ilimitadas muito mais que estatísticas adequadas.

Outro sofrimento para a mulher de hoje aparece na fase da menopausa. Os mitos do “corpo perfeito” e da “juventude eterna” tem-se feito sentir também com força. As ideias recorrentes de se manterem ativas, jovens, de não envelhecerem e de manterem vivo o desejo sexual criam enormes exigências e dificultam o encontro de um espaço para elaborar as mudanças e os lutos que o próprio corpo lhes traz nesse momento da vida. Momento que, se encontram uma escuta adequada, pode ser rico na multiplicação de significações. Quando isso não é possível, acabam se convertendo em depressões que são rapidamente medicadas.

Os homens têm dificuldade de acompanhar tantas mudanças, e as próprias mulheres têm visto, fragilizadas, suas redes identificatórias. Na dificuldade de encontrar parceiros para compartilhar seus projetos, sentem-se sozinhas e, na resolução da equação trabalhar, amar e ser mãe, se deparam com fortes conflitos internos entre os modelos de identificação tradicional e a abertura à realidade plural do desejo.

Nesse trabalho de inventar suas vidas, as mulheres ficam tensionadas entre os estereótipos da cultura que se lhe impõem como mandatos, mas que também fazem parte de sua subjetividade, e o que há de mais feminino nelas: o convívio com a incerteza, a inclusão do múltiplo, a tolerância com as diferenças, fios capazes de tecer um bom lugar de existência para elas no mundo.


*Psicanalista, supervisora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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