ONG diz que PEC 241 fere tratados internacionais de direitos humanos

Congelar os gastos do governo com saúde, educação e assistência social por duas décadas. Essa é a proposta do governo para a superação da crise no Brasil. A medida, embalada na PEC 241 (Proposta de Emenda Constitucional), será votada em plenário na Câmara nesta segunda-feira (17). Basicamente, só vai considerar a inflação para reajuste. 

A PEC tem por base o entendimento de que a economia possui um efeito cascata – ou seja, caso melhore, vai progressivamente beneficiar a todos. Trata-se de uma repaginação daquela ideia de fazer o “bolo crescer para dividi-lo’, bem cara ao desenvolvimentismo. O cálculo é o seguinte: o governo contém os gastos, os credores ficam mais felizes – e, com o tempo, o crescimento da economia começa a fazer o povo feliz também. 

As consequências dessa política o Brasil e o mundo conhecem bem. Tanto que o argumento é combatido por tratados internacionais de direitos humanos porque fragiliza ainda mais grupos já vulneráveis. Se a PEC for aprovada, por exemplo, epidemias e outras urgências em saúde e educação vão ser decididas pelo jogo político– e não pela Constituição.

Hoje, nossa carta magna postula que os recursos devem seguir o crescimento da economia para essas áreas e coloca-as como prioritárias no País independente de quem está no comando. É um entendimento de que, aconteça o que acontecer, elas não podem ser abaladas porque estão ligadas à dignidade humana: ao que de mais básico existe para o bem viver. 

Ato contra a PEC 241 realizado na Câmara no dia 5 de outubro. Foto: Lula Marques/AGPT
Ato contra a PEC 241 realizado na Câmara no dia 5 de outubro. Foto: Lula Marques/AGPT

O entendimento é mundial. Não é só a Constituição que vê saúde, educação e assistência social como prioritários. O Brasil é signatário de tratados internacionais de direitos humanos que postulam que a crise não deve ser uma justificativa para retrocessos em direitos. Um deles é o Pacto de Direitos Econômicos e Sociais, assinado pelo Brasil em Assembleia Geral da ONU em 1996.

Quem é signatário do pacto deve enxergar direitos sociais como prioridade. Antes de medidas de ajustes, todos os impactos devem ser apresentados e as populações marginalizadas devem ter assegurada sua dignidade humana. Também devem ser consideradas todas as alternativas para a crise. Dois princípios são fundamentais aqui: o do não retrocesso e da alocação progressiva de recursos para direitos.

Para a ONG Conectas, a PEC 241 fere os dois princípios. O governo também não está apresentando dados substanciais que demonstrem o quanto a proposta vai ajudar na crise – e, principalmente, qual o impacto que terá para os menos desfavorecidos e para as áreas que atinge.

A Conectas é uma organização não-governamental fundada em 2001 em São Paulo. Desde janeiro de 2006, tem status consultivo na Organização das Nações Unidas (ONU).  Abaixo, Caio Borges, advogado do projeto de empresas e direitos humanos da entidade, e mestre em direito e desenvolvimento pela Fundação Getúlio Vargas, explica o que está em jogo com a medida. 


Saúde!Brasileiros: Como você vê a PEC?

Caio Borges: É um regime fiscal que impõe um teto global de gastos por um prazo de 20 anos. Se aprovada, determina que os gastos primários do governo vão ser corrigidos anualmente apenas pelo índice da inflação. Essa é a definição básica, mas a PEC é uma escolha. Ela é uma escolha de como um ajuste fiscal deve ser feito. O Brasil precisa desse ajuste, que isso fique claro. Mas o fato é que uma escolha foi feita e a PEC é essa escolha.

Por que o Brasil precisa desse ajuste?

Os dados oficiais mostram que a trajetória da dívida pública brasileira pode chegar a um nível insustentável e também a arrecadação diminuiu. A gente chegou numa situação econômica delicada. Os gastos estão crescendo e a arrecadação não. É basicamente isso, mas não é tão simples quanto parece. Quando você vai abrir a planilha, você vê que não são os direitos sociais que ocupam a maior fatia dos gastos – mas justamente os juros da dívida pública. Então, é preciso analisar melhor o quadro e ser transparente quanto a ele.

Como a PEC fere os tratados internacionais?

O Brasil é signatário do Pacto de Direitos Econômicos e Sociais [acordo assinado em Assembleia Geral da ONU em 1996]. Nele, o País se obriga a assegurar recursos para direitos fundamentais – ao trabalho, à saúde, à moradia, à educação e ao lazer. Isso também está contido na nossa Constituição e é consenso de outras convenções internacionais.

O pacto determina que, para assegurar esses direitos, o Estado deve alocar a maior quantidade de recursos, dentro da capacidade de cada País, para direitos sociais. É a realização progressiva.

Também há o princípio do não retrocesso, que é valor geral dos direitos humanos – não só do pacto. Segundo esse princípio, uma vez que o Estado tenha atendido a um direito básico, ele não pode voltar atrás.

Como esses tratados se pronunciam em relação à medidas de austeridade, como a PEC?

O Pacto de Direitos Econômicos e Sociais periodicamente publica documentos, os “comentários gerais”, como são chamados. Esses documentos esclarecem quais são as responsabilidades dos países que assinam esse tratado. Em várias situações, eles são contrários a medidas de austeridade porque frequentemente elas recaem sobre os grupos mais marginalizados. A Unicef [órgão da ONU que assegura direito de crianças] também já se pronunciou num entendimento crítico a esse tipo de ajuste.

No que esses documentos se fundamentam para ressalvas a ajustes desse tipo?

São vários os níveis de orientação. Eles falam que qualquer medida de ajuste fiscal deva ser precedida de avaliação prévia de impacto. Por exemplo, países devem avaliar qual a consequência para o salário mínimo ou para o acesso universal à saúde, ou para o acesso universal à educação.

Existe uma presunção de que o ajuste deva ser proporcional e limitado no tempo. Também deve ser precedido de uma análise profunda em que várias alternativas devem ser consideradas anteriormente. 

Existe uma análise desse impacto no caso da PEC?

Eu não tenho conhecimento de impactos futuros, o que existe é um diagnóstico da situação fiscal do País. E é com base nesse diagnóstico – e não em uma projeção futura – que eles baseiam a PEC. No documento que recomenda a proposta, há uma avaliação genérica de que o mercado vai reagir melhor – com os credores vendo que o Brasil tem maior capacidade de gerir o orçamento.

Mas quando é que se projeta que vai começar a gerar o superávit? Qual é o turning point? Existe uma cláusula que essa revisão vai ser feita em dez anos, mas não há clareza sobre as consequências desse ajuste para o que ele se pretende e para o seu impacto. Não há dados substanciais.

A PEC fere direitos humanos?

Ela viola o princípio do não retrocesso. Na Constituição, há uma regra que diz que a despesa com saúde e educação acompanha o crescimento da arrecadação. Hoje a arrecadação cresce menos que a inflação; mas, caso a arrecadação volte a crescer, essas áreas devem ser reajustadas pelo índice mais favorável. Se não forem, tem-se um caso claro de retrocesso proibido pelo Pacto da Direitos Econômicos e Sociais.

Há uma discussão colocada de que o teto global não significa que os investimentos vão cair. Digamos que, em tese, nada impede que o investimento seja maior no jogo político. Mas esse argumento não é compatível com um Estado que está priorizando os recursos para realização de direitos. Ele não está assegurando que vai progressivamente alocar o máximo de recursos. Isso não está dentro de uma política de direitos humanos e da consideração de outras alternativas.

A falta de uma avaliação mais precisa também é, por si só, uma violação de direitos. Para os direitos humanos, o Estado deve priorizar reformas que não penalizem os grupos mais vulneráveis. O entendimento da Conectas é que a PEC caminha para fragilizar esses grupos.

Foram consideradas outras alternativas para o enfrentamento da crise?

Não é a especialidade da Conectas, mas estudos mostram que o Brasil tem uma carga tributária que não é a mais justa –os mais riscos têm proporcionalmente uma carga tributária menor que os mais pobres. Tudo isso merece uma análise mais aprofundada.

A PEC se baseia na possibilidade de um maior crescimento econômico, que geraria mais empregos e, por isso, traria progressivamente emprego e renda a todos. Como os tratados veem isso? 

Há um termo usado para designar essa argumentação. É o  “trickle-down”.  A ideia de que todos vão se beneficiar igualmente de uma política econômica. É o argumento usado por Donald Trump, por exemplo, para dizer que a redução de impostos para as empresas gera efeitos positivos para toda a sociedade. No caso da PEC, ela coloca um teto de gastos globais, mas não fala de novas políticas que garantam os direitos. De modo geral, basear uma política em um efeito “cascata” vai contra os direitos humanos.

Michel Temer está na Índia, em reunião da cúpula dos Brics (grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Como o grupo vê esses ajustes historicamente?

Os Brics reiteradamente afirmam que sua cooperação visa, entre outros fins, um crescimento inclusivo. Esse objetivo está inclusive no documento chamado Estratégia para a Parceria Econômica dos Brics. Na medida em que o regime fiscal proposto falha em demonstrar quais impactos terá (positivos ou negativos) sobre os mais desfavorecidos, o Brasil entra em contradição com seus compromissos também no grupo.

Não se trata de uma violação propriamente dita porque, no caso dos Brics, não há um tratado ratificado que estabeleça tal direito ou princípio, mas sim de uma contradição entre discurso e prática. 

Quais vão ser as consequências da PEC para o País?

É muito sério porque quebra um ciclo. “A trancos e barrancos”, estávamos caminhando no sentido de uma universalização do acesso à educação básica e de políticas mais inclusivas no ensino médio e no ensino superior. Também quebra a ideia de um acesso universal à saúde. No fim, é um Estado que não mais prioriza essas questões.


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