Cinema como reflexão

Os cineastas Fernando Meirelles, José Padilha e Walter Salles. Fotos: Carolina Teiveles Meirelles/Arquivo pessoal/Mário Miranda Filho - Agência Foto
Os cineastas Fernando Meirelles, José Padilha e Walter Salles. Fotos: Carolina Teiveles Meirelles/Arquivo pessoal/Mário Miranda Filho – Agência Foto

A ideia de compilar opiniões de Fernando Meirelles, José Padilha e Walter Salles em uma mesma entrevista veio à tona na primeira semana de setembro, na reunião de pauta desta edição que agora está diante de seus olhos. O roteiro de perguntas foi elaborado a 14 mãos. Não foi fácil entrelaçar agendas e rodar esse plano sequência – como se diz no cinema –, mas, no final, deu tudo certo. Nossa intuição de que haveria interlocução entre os depoimentos de Anna Muylaert e as opiniões dos três cineastas, perceberá o leitor, não foi equivocada.

Durante a produção da mesa-redonda online, Meirelles havia acabado de colocar à prova experiência inédita, a direção da ópera Os Pescadores de Pérolas, de Georges Bizet, que integrou a 14ª edição do Festival de Óperas do Theatro da Paz, em Belém, no Pará. Missão cumprida, encara agora outro desafio com sabor de novidade: a codireção, ao lado da cenógrafa Daniela Thomas, do cerimonial de abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Na sequência da Olimpíada, comandará duas séries estrangeiras de TV: uma para a BBC Internacional, que será rodada na Inglaterra e deve ser exibida no final de 2016; outra com parceiros canadenses e norte-americanos, que será filmada 2017.

Radicado em Los Angeles desde novembro de 2014, Padilha causou frisson mundial com a direção dos dois primeiros episódios da série Narcos, do Netflix, que conta a história do traficante colombiano Pablo Escobar. Agora, desdobra-se em cinco frentes: a criação do roteiro do longa-metragem Mind Corp, projeto da Warner Brothers que também dirigirá; a produção da segunda temporada de Narcos; o desenvolvimento de dois filmes independentes – All Tied Up e Tri Border; e uma nova série para a TV, sobre o sistema prisional americano.

Salles atravessou o mês de setembro entre Ásia, Europa e América do Norte. Ao longo de duas semanas, o trânsito do cineasta nos três continentes foi motivado pela divulgação de seu novo longa-metragem, Jia Zhang-ke: Um Homem de Fenyang. O documentário é um retrato poético sobre o jovem cineasta chinês, considerado por Salles um dos mais importantes autores em atividade. Recém-lançado, o filme ainda deve consumir muito espaço da agenda do diretor, que, além de exibir o trabalho em diversos países, tem organizado retrospectivas da filmografia de Zhang-ke, como as realizadas recentemente em São Paulo e no Rio de Janeiro, na ocasião do lançamento do documentário.

Questões sociopolíticas, geopolíticas, éticas, humanitárias, ambientais e, claro, cinematográficas compõem a entrevista a seguir (desenvolvida a partir do primeiro depoimento, enviado pelo diretor de Tropa de Elite). Com a palavra, Fernando Meirelles, José Padilha e Walter Salles.

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Brasileiros – Central do Brasil, Cidade de Deus e Tropa de Elite são marcos do nosso cinema. Em crítica publicada na estreia de Que Horas Ela Volta?, o jornalista José Geraldo Couto defendeu que o filme de Anna Muylaert tem tudo para também ser um marco. Vocês viram o filme? Concordam com a avaliação do crítico?

José Padilha
Não sei exatamente o que define um marco na cinematografia brasileira, segundo José Geraldo Couto. Mas posso dar minha opinião: gosto muito do filme. Achei o prêmio da mostra Panorama (a seleção do público no Festival de Berlim 2015) muito bacana. Prêmios do público são sempre significativos, ainda mais em um festival com a qualidade do Festival de Berlim. O roteiro é muito bom e Anna também fez uma grande direção. Regina Casé está fenomenal. Um grande filme.

Fernando Meirelles Alguns filmes conseguem tocar os corações e viram fenômeno. Ninguém controla isso, mas dá para ver que Que Horas Ela Volta? é um desses. Está fazendo bilheteria apoiado quase exclusivamente em seu alto poder de comunicação com o público. O filme é mesmo excelente, cinema brasileiro com a boa pegada dos filmes argentinos.

Walter Salles Vi Que Horas Ela Volta? em Berlim, numa sessão inesquecível. O público ficou imantado pela história muito bem narrada por Anna Muylaert. Ria, chorava, estava tomado pelos personagens. Regina Casé está extraordinária, uma atuação luminosa. Concordo, o filme é um marco, um reflexo importante de um país em transformação.  

Desde o início de 2015, o filme de Anna faz grande sucesso de público no exterior. Algo que vocês experimentam há um bom tempo. Ao longo desses anos, como o Brasil foi e é visto lá fora? Dá para dizer que existe um “cinema brasileiro”? No exterior, vocês são identificados como “cineastas brasileiros”?

J.P. O cinema brasileiro não é reconhecido a partir de critérios estéticos desde o Cinema Novo. Minha experiência nos festivais e nos estúdios é sempre a mesma: quem reconhece minha cinematografia a reconhece muito mais por meu estilo pessoal do que por supostos componentes estéticos comuns a outros filmes brasileiros.

F.M. Para quem olha de longe pode parecer que há unidade na cinematografia argentina, indiana ou chinesa, mas, como a nossa, elas são muito diversas e plurais, especialmente na China e na Índia. Se pensarmos nos filmes brasileiros que estão no circuito internacional de festivais deste ano, de fato, não se vê uma cara ou tendência, o que é bom. O que o lindo Boi Neon, do Gabriel Mascaro, que foi premiado em Veneza este ano, tem a ver com Zoom, do Pedro Morelli, que começou carreira internacional em Toronto, ou com Sal da Terra e Que Horas Ela Volta??!  Muito pouco. Não dá para empacotar “cinema brasileiro” como padrão.  Ainda bem que é assim. Também sinto que quando sou procurado não é exatamente minha brasilidade que se busca. Mais de uma vez fui convidado para fazer filmes pelo meu “olhar de fora”, independente de onde seja. Foi assim no Jardineiro Fiel, um filme com temática muito inglesa, sobre diplomacia inglesa, e com outros roteiros que li, mas não embarquei. A maneira de dirigir atores e deixar a decupagem meio solta também é mencionada quando sou convidado.

W.S. Acho que uma cinematografia só é forte quando várias coisas acontecem ao mesmo tempo: os mestres continuam a filmar e a nos inspirar, as gerações intermediárias propõem visões diferentes do País, e jovens realizadores chegam para oxigenar a narrativa. Penso que, hoje, o cinema argentino faz isso melhor do que outros países na América Latina. De um lado, vemos filmes como o ótimo El Clan, de Pablo Trapero, que ganhou o prêmio de Melhor Direção no Festival de Veneza e passou de 2,5 milhões de espectadores na Argentina em menos de um mês de exibição. É cinema urgente, ligado à identidade do país: o filme expõe um caso verídico que ocorreu durante a ditadura militar argentina. Do outro, temos filmes como Jauja, uma obra-prima de Lisandro Alonso, que faz um cinema rigoroso, essencial. O cinema de Lucrecia Martel vai na mesma direção: é uma investigação pessoal que toca naquilo que interessa a todos, o humano. E jovens talentosos, como Santiago Mitre, estão surgindo. Os cineastas argentinos estão oferecendo um retrato ao mesmo tempo agudo e multifacetado de seu tempo. O cinema brasileiro já ocupou essa posição, e filmes como o excelente O Som ao Redor e Que Horas Ela Volta? provam que estamos na direção certa, mas precisamos de uma produção mais constante de grandes filmes.

Que balanço pode ser feito dos 20 anos da retomada do cinema brasileiro? Que experiências de fomento deram certo em outros países e podem ser aplicadas aqui?

J.P. Estados Unidos e Índia são os únicos mercados que independem de incentivos fiscais para existir. E, mesmo assim, os recursos de incentivo fiscal aportados no cinema americano anualmente ultrapassam e muito os incentivos aportados no Brasil na última década. De modo que a questão não é se precisamos de incentivos para existir, mas de que forma os incentivos devem ser alocados, em que proporção do orçamento e da distribuição, quem faz a alocação, e qual deve ser o custo dos recursos incentivados para o produtor e para o distribuidor. Essas questões nunca foram levadas a sério no Brasil. Nossa política audiovisual é muito mais um “cala boca” para os cineastas pararem de reclamar nos jornais do que um projeto de desenvolvimento do audiovisual no Brasil. A primeira coisa que precisamos mudar é isso. Mas, para tal, só elegendo gente que realmente se preocupe com Cultura e Educação.

F.M. – Hoje o gargalo do cinema brasileiro está na distribuição e na exibição. Metade dos filmes produzidos não chega às telas. Regular o mercado de exibição para evitar a monocultura talvez devesse ser o próximo passo. Cinema é um produto cultural, não deve ser tratado apenas como produto de consumo. Lançamentos que ocupam um terço das salas do País, independentemente da qualidade, deveriam ser evitados. Outro ponto que vale mais atenção são as parcerias entre cinema e TV. A Globo Filmes está cada vez mais forte nesse caminho com resultados excelentes. Pena que as outras emissoras não se movimentem nessa direção.

W.S. A retomada foi uma reação ao silêncio forçado imposto pelo desgoverno Collor. Tínhamos cinco mil salas no País quando Collor chegou ao poder, e 700 quando ele se foi. Fazíamos uma média de 70 filmes por ano, passamos a um ou dois durante aquele período. A retomada foi o desejo de reencontrar um reflexo do País na tela, uma identidade brasileira após aquele caos que se instalou, e se somou aos 25 de ditadura militar. Quanto ao financiamento: acho que o sistema francês, tanto de financiamento quanto de defesa da produção e exibição, é o que melhor funciona mundo afora. Não é à toa que os filmes franceses respondem pela metade dos ingressos vendidos no país e são, ao mesmo tempo, plurais e diversificados. A França é também um dos poucos países em que a venda de ingressos aumenta ano a ano. Isso acontece graças a uma regulamentação rigorosa por parte do Estado. As cinematografias dos países que fizeram o contrário, ou seja, deixaram a exibição e produção na mão do mercado, acabaram ou estão em crise.

 Nos tempos de Cinema Novo e Embrafilme a qualidade técnica das nossas produções era precária. Quando a geração atual entrou em cena, com tecnologia de primeira, houve críticos ranzinzas que classificaram os novos filmes como “estética publicitária”. Filme bom tem de ser meio sujinho?

J.P. – Diretores que têm recursos e sabem filmar com boa qualidade técnica podem escolher fazer filmes sujinhos. Diretores que não têm recursos para filmar com qualidade técnica não têm escolha. 

F.M. Isso é uma bobagem. Filme bom é o que tem bom roteiro e bons atores. Se der para ficar interessante visualmente, melhor. Às vezes, a crueza da realização adiciona drama e conta uma história por si só. Filmar com uma equipe pequena e com limites de recursos te obriga a encontrar soluções que jamais encontraria com 12 caminhões estacionados ao redor do set, mas na maioria dos casos o limite não é opção, é contingência mesmo.

W.S. Quando Kieslowski (o cineasta polonês Krzystof Kieslowski) filmou o Decálogo, que considero a melhor série de filmes já feitos para a televisão, ele tinha apenas negativo e tempo para filmar uma tomada de cada plano. O resultado é de um rigor e de uma precisão absolutos. Não são a tecnologia ou os meios que impactam um filme ou uma série, e sim as ideias e a visão de mundo de cada cineasta.

Como vocês avaliam o jornalismo cultural e a crítica cinematográfica no Brasil?

J.P. Acho que o jornalismo cultural é muito diverso para ser avaliado como um todo. Temos ótimos críticos. E temos críticos superficiais, que buscam a polêmica a qualquer custo. 

F.M. Como o Padilha, acho que nossa crítica é diversa. Há jornalistas e críticos que respeito e leio e outros que já aprendi a ignorar, pois simplesmente não reverberam na minha cabeça.

W.S. A crítica é vital. No caso da Nouvelle Vague, ela prenunciou o movimento que iria transformar o cinema moderno. A crítica veio antes dos filmes, renovou toda uma cinematografia.

 Neste ano, celebramos 30 anos da redemocratização. Em 2014, foram completados 50 do golpe civil-militar de 1964. Salvo exceções, não há um grande volume de filmes ficcionais que abordam o tema. Como vocês enxergam essa realidade, especialmente agora que, estranhamente, há quem vá às ruas pedir a volta dos militares ao poder?

J.P. A premissa desta pergunta não corresponde aos fatos. São vários os filmes sobre a ditadura. Bruno Barreto foi indicado ao Oscar com O Que É Isso, Companheiro?. Cabra Marcado para Morrer, do Eduardo Coutinho, apesar de documental, já falava sobre a ditadura. Mas há muitos outros: Ação Entre Amigos, do Beto Brant; Memórias do Cárcere, do Nelson Pereira dos Santos; O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias, do Cao Hamburger; Cidadão Boilesen, do Chaim Litewski – outro documentário; Eles não Usam Black-Tie, do Leon Hirszman; Manhã Cinzenta, de Olney São Paulo; Cabra Cega, de Toni Ventura; A Cor do Seu Destino, do Jorge Duran, e por aí vai…  Além desses filmes, há outros que falaram da ditadura metaforicamente. De modo que não acho que o assunto tenha sido ignorado pelo cinema brasileiro. Todavia, na retomada houve de fato uma renovação dos temas – como se a reconquista da democracia nos permitisse falar de outras coisas, o que acho salutar. Quanto às pessoas que pedem a volta da ditadura: todo país tem sua cota de radicais desinformados.

F.M. O que deve acontecer com filmes sobre a ditadura é que com o passar do tempo o rancor vai diminuindo, a distância faz com que o olhar sobre um período vá mudando até chegarmos a fazer comédias sobre a ditadura, como já acontece com o nazismo (caso de Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino). Chegaremos lá.

W.S. Lembro também do ótimo Crônica de uma Busca, de Flavia Castro. De forma geral, concordo que o documentário brasileiro, que considero hoje o mais fértil na América do Sul, cobriu mais amplamente os anos de chumbo no Brasil. Da mesma forma, concordo que falta retratar muita coisa desse período negro na ficção. Temos projetos nesse sentido na produtora, inclusive o primeiro filme de ficção de Flavia Castro, sobre a volta dos exilados ao Brasil.

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No início de setembro, o escritor Ignácio de Loyola Brandão escreveu uma crônica para o jornal O Estado de S. Paulo, intitulada Quem Vai Filmar o Caos Nojento da Política?. Nela, ele comenta o fato de ter revisto La Dolce Vita, de Federico Fellini, e imagina que seria viável adaptar a trama para o Brasil atual, tendo como cenário Brasília, em vez de Roma. Vocês aceitariam tal desafio? Como seria esse filme?

J.P. Estou louco para filmar o caos nojento da política nacional. Insinuei isso nos planos finais de Tropa de Elite 2. E já tentei fazer um filme sobre o mensalão, mas não é fácil captar recursos para filmes desse tipo – os empresários que têm lucro suficiente para investir em filmes têm medo de retaliações do governo e hoje em dia temos o governo mais corrupto que já vi. De minha parte, não desisti ainda. Acho que a Operação Lava Jato dava um filme e tanto. Mas acho melhor esperar o fim dessa história. Se eu tivesse feito o filme do mensalão anos atrás teria subdimensionado a corrupção.

F.M. O problema de se fazer filmes sobre o poder no Brasil é que a nossa realidade já superou a ficção. O risco é ao tentar ser realista parecer caricato, tamanha a zona que se tornou Brasília.  Neste ano lançamos uma minissérie, Felizes para Sempre (exibida na Rede Globo), que esbarrava na questão de troca de apoio político por obras.  Na série, nosso empreiteiro era preso por isso. Quando preparávamos o roteiro, aquela prisão parecia uma coisa descabida, um pouco irreal, mas resolvemos deixar como provocação.  Durante as filmagens, os primeiros empreiteiros de fato foram presos na Operação Lava Jato. A série foi profética, mas o que era para ser um fato impensável na ficção virou apenas a repetição da realidade quando foi ao ar. Olho para aquela turma e penso que não vale gastar mais tempo com ela. Eles são transitórios. Vale a pena, sim, embarcar em temas que podem fazer a diferença no Brasil como Educação ou Meio Ambiente. 

W.S. Li há pouco o excelente Brasil, Uma Biografia, de Lilia Schwarcz e Heloísa Starling. O livro permite entender melhor a origem e a imensidão da dívida social brasileira, assim como as consequências dos desgovernos que marcaram a história do País. Ver os eventos recentes de forma isolada não ajuda a reconhecer as questões estruturais que nos levaram até aqui. Nesse sentido, há filmes para serem feitos, desde que o ibirapitanga dos tupis-guaranis foi rebatizado de pau-brasil, para ser logo cortado e exportado. Ou desde que o Bispo Sardinha começou a cobrar pela absolvição dos pecados na hora da confissão. Isso aconteceu em 1550. São assuntos que também estamos pesquisando na produtora como matéria para projetos. Para voltar ao Brasil contemporâneo, penso que duas pessoas falaram de forma particularmente precisa e corajosa da crise atual: Frei Betto, em entrevista à Folha de S. Paulo, e Wladimir Pomar, analisando a conjuntura política brasileira em um artigo intitulado Narrativas e Narrativas (publicado no blog Página 13).

Se tivessem de criar um filme sobre o futuro do País, qual seria a ficção possível sobre o Brasil de 2035?

J.P. Não sei como o Brasil vai estar em 2035 – e não acredito que alguém saiba. 

F.M. Há um dado sobre nosso futuro que teria de ser considerado, que são os efeitos do aquecimento do planeta. Secas mais longas, enormes inundações ou migrações de exilados do clima deverão ter um impacto geopolítico de proporções desconhecidas no mundo. O movimento de populações na Indochina – à medida que as geleiras do Himalaia forem se acabando e deixando aquela população sem água – afetará a vida de todos, inclusive a nossa, no Brasil. A humanidade está diante de seu maior desafio e parece ainda não ter acordado para o problema. A Shell continua prospectando óleo no Ártico e o Brasil continua colocando todas as fichas na estupidez sem tamanho que é o Pré-Sal. Um filme sobre o futuro teria que caminhar por aí. Tudo o mais são detalhes que estão perdendo a importância perante o que vem pela frente.

W.S. – Jia Zhang-ke, em seu último filme, fala do passado, mas também do futuro na China. Acompanha seus personagens dos anos 1990 até 2025. Não tenho essa mesma imaginação. O futuro sempre me pareceu um território complexo e incerto no cinema. Por outro lado, sonhar faz parte da razão de ser do cinema, que se preocupa basicamente com três questões: quem somos, de onde viemos, para onde vamos? O Fernando toca numa questão vital: não teremos futuro se não pensarmos coletivamente em problemas como o aquecimento global, a utilização de fontes limpas de energia, a diminuição drástica da poluição. Como também não teremos futuro se não resolvermos questões de desigualdade de renda, de falta de transparência dos governos, e também das empresas globais. Joseph Stiglitz fala bem desses temas em The Great Divide.

Como fica a sala de cinema nesses tempos em que disputa espaço com canais de exibição como o YouTube e o Netflix, que permitem acesso a filmes via internet por meio de TVs digitais e equipamentos portáteis como notebooks, tablets e smartphones?

J.P. Adoro a tela do cinema e acho que ela sempre vai existir. Só não sei se vai ser a forma predominante de exibição de filmes. Mas adianto que a Netflix não faz filmes ou séries com resolução inferior a 4K (a maior definição dos aparelhos de TV de última geração). Isso significa que estão pagando um preço a mais na pós-produção, porque acreditam que os formatos de exibição em telas grandes – e não em tablets e smartphones – serão predominantes. Tomara.

F.M. Como o Zé, acho que a experiência da sala é forte o suficiente para não desaparecer. Um filme numa sala escura é como um sonho compartilhado. Sempre vamos gostar disso, mas o cinema será menos hegemônico do que já foi.  Novas tecnologias, como a Realidade Virtual (VR), devem se impor por serem de fato experiências fortes. O VR é o oposto do cinema. Você assiste completamente sozinho, com seus óculos e seu headphone, e vai além da experiência de ver um filme em casa com alguém ao lado. Estou muito interessado em filmar ficção nesse formato. 

W.S. Torço muito para que o Zé esteja certo. O que me levou ao cinema foi justamente a possibilidade de compartilhar uma experiência coletiva, que só o filme projetado na tela grande permite. Um close de Chaplin no cinema, que presente! Como espectador, você é tomado por aquilo. O cinema oferece algo raro, a possibilidade de ‘maravilhamento’. Em sentido contrário, poucas coisas são mais tristes do que ver, sozinho, uma boa comédia. Dito isso, começam a surgir experiências ligadas a novas formas coletivas de se projetar filmes em diversos lugares do mundo. Cinema projetado em praças, em espaços públicos, como acontece em várias cidades europeias.

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Como vocês avaliam o fenômeno de retomada da popularidade das séries de TV, como Game of Thrones, Breaking Bad, Mad Men, The Sopranos e The Newsroom? Elas impactam a indústria do cinema?

J.P. Ao contrário do que escreveu Arnaldo Jabor recentemente em O Globo, aqui nos EUA estamos vivendo o início da retomada do cinema de autor. Isso porque os sistemas de streaming têm receitas mensais, que independem da venda de cada produto que fazem. Por isso, ao contrário dos executivos das TVs abertas e dos estúdios (de cinema), os executivos da Netflix e da Amazon não têm medo de arriscar e não precisam ser conservadores ao extremo. Para eles, interessa mais ter uma mistura interessante de produtos do que vários filmes de fórmula. Fiz um filme de estúdio (Robocop, coprodução entre MGM e Sony) e uma série para a Netflix, e a diferença é brutal. Narcos, por exemplo, é uma série bilíngue e legendada, com atores desconhecidos do público daqui, narrada em primeira pessoa, e que mistura material de arquivo da TV colombiana com filmagens em locação. Um formato inédito para a TV americana. E deu certo. Agora a Netflix e a Amazon estão entrando forte em cinema, com a mesma filosofia de correr riscos. Acho que os próximos anos prometem bastante. É verdade que no passado boas séries de TV foram feitas, como bem lembrou Walter. Twin Peaks é mesmo genial, e foi feita no modelo normal da TV aberta americana. Isto é possível, embora raro. Todavia, há algo de genuinamente diferente acontecendo hoje. Com o surgimento da internet de banda larga e o sistema de streaming, esta em curso uma mudança radical nos paradigmas de produção, distribuição e receita dos grandes estúdios. O streaming com cobrança mensal muda a lógica da oferta de filmes e séries de TV, e muda também os hábitos do consumidor. A minha experiência direta com este processo me faz acreditar no renascimento da liberdade de criação para diretores e roteiristas nos EUA, onde se concentra a maior produção audiovisual no mundo. Por isso, independente da qualidade das séries atuais sobre as antigas, vejo uma revolução se armando. Acho que os próximos anos prometem bastante.

F.M. Minha tese é de que as séries voltaram por causa das TVs de plasma, que são grandes, têm boa qualidade e bom som. Antes eu filmava para TV abusando de closes e pegando leve no som, me apoiava muito nos diálogos. Hoje faço planos longos onde o personagem está pequeno em quadro e confio na imagem para contar minha história. Essa mudança é que fez as séries ficarem tão interessantes para diretores que trabalhavam apenas com cinema.

W.S. Ainda bem que vocês falaram em retomada, porque a percepção de que as séries são um admirável mundo novo me parece estranha. É como se tivessem acabado de ser inventadas. E Twin Peaks, a extraordinária série de David Lynch, que tinha a ousadia adicional de ser transmitida em canal aberto às 9 da noite? E o Decálogo? E as incríveis séries do canal cultural Arte dos anos 90, como Tous les Garçons et Les Filles de Leur Âge, produzidas pelo visionário Pierre Chevalier? E as ótimas séries curtas europeias, como Carlos, do Olivier Assayas? É claro que esses exemplos não invalidam as séries atuais norte-americanas que são realmente boas, a começar pela do Zé (Narcos), que me parece muito mais complexa e inventiva do que muitas outras. As séries existem há tempos e se multiplicaram agora com a ampliação do mercado da TV a cabo. O mercado e a tecnologia vão mudando as coisas. É algo inevitável. A proliferação das séries teve um efeito importante nos EUA, onde a produção dos estúdios está cada vez mais limitada a poucos blockbusters para um público adolescente. Como isso impactará o cinema? Depende do tipo de cinema e de outras variáveis como a pirataria em DVDs e via download, além da proteção dada à produção cinematográfica em cada país. O cinema, como o teatro, já foi dado como morto várias vezes: quando surgiu o sonoro, a cor, o 3D, a TV, a TV 3D, etc. Da mesma forma, a roda-gigante dos parques de diversão também foi dada como morta inúmeras vezes. Acabei de passar por uma, cheia de jovens, no caminho do aeroporto. Como ela sobreviveu? Porque lá do alto da roda-gigante você tem uma visão única e singular do mundo. Prefiro acreditar que os filmes que tiverem essas qualidades sobreviverão.  

Como é trabalhar para a indústria do cinema dos EUA? Vocês sofrem ingerências sobre os trabalhos que produzem fora do País?

J.P. Filmes de estúdio e programas de TV aberta sempre têm interferência dos executivos, porque a receita dessas empresas depende diretamente do resultado de cada programa e de cada filme. Já no Netflix e na Amazon não é assim…

F.M. Nunca fiz um filme norte-americano. Só filmes europeus. 

W.S. Concordo com o Zé. Acho que o território do cinema ou da TV independente é o único em que a liberdade criativa realmente existe. Em Diários de Motocicleta, Robert Redford foi um produtor ideal, um ótimo interlocutor que me deu carta branca, mas também me apontou como o filme poderia melhorar. Idem com Pierre Chevalier no Arte, quando fiz parte da série 2000 Visto Por. O grande produtor não é aquele que diz apenas sim, mas aquele com quem você pode ter um diálogo criativo e crítico, que ajuda o projeto.

Quais filmes brasileiros e estrangeiros vocês viram recentemente e recomendam para nossos leitores?

J.P. – Brasileiros: Que Horas Ela Volta? O Som ao Redor (de Kleber Mendonça Filho), O Sal da Terra (de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado) e o documentário Elena (de Petra Costa). Americanos: Birdman (de Alejandro González Iñárritu), Sicario (de Denis Villeneuve) e Selma (de Ava DuVernay). 

F.M. Brasileiro: Boi Neon (de Gabriel Mascaro) – que acrescento à excelente lista do Padilha. Estrangeiro: Virunga (documentário de Orlando von Einsiedel).

W.S. Queria falar de um filme de ficção em particular, um filme tão fértil que pode irrigar muitos outros: O Som ao Redor. Um filme-síntese, daqueles que pegam na “jugular da brasilidade”, para citar o psicanalista Hélio Pelegrino. Um dos grandes filmes dos últimos anos, e não só no Brasil. No documentário, gostei muito de Campo de Jogo, do Eryk Rocha, e de Nostalgia de La Luz e El Botón de Nacar, de Patricio Guzmán.

Certa vez, Tom Jobim afirmou que fazer sucesso no Brasil é ofensa pessoal, porque, apesar de provocar orgulho em alguns brasileiros, também causa inveja a muita gente. Vocês acham que isso mudou?

J.P. De fato, no Brasil, o sucesso, às vezes, é ofensa pessoal. Não para o brasileiro em geral, mas sim para uma parcela da crítica. No mundo inteiro – inclusive em países onde se fala espanhol – a performance de Wagner Moura em Narcos foi elogiada. No Brasil, onde a língua é o português, o sotaque dele foi motivo de polêmica. O pessoal do marketing do Netflix teve dificuldade para entender o que estava acontecendo. Para explicar, citei Tom Jobim.

F.M. Claro que já fui criticado duramente, mas sempre entendi essas críticas como restrições ou comentários dirigidos a trabalhos que fiz e não a mim, pessoalmente. Paulada pesada mesmo eu tomei da crítica internacional, e mais de uma vez. É duro. Minha resposta para isso foi a resposta da avestruz: parar de ler. 

W.S. Acho que o Neymar não concordaria muito com a frase do Tom (rs…).

Para José Padilha – A série Narcos está fazendo grande sucesso, mas também sofre críticas de que a história é contada com um viés americano. O que pensa disso?

J.P. Participei ativamente da redação e da montagem de cada capítulo da série e posso atestar que ela não foi contada de um ponto de vista americano. O ponto de vista do narrador não é necessariamente o ponto de vista do cineasta. A prova disso é que não tivemos um só diretor americano filmando Narcos. Foram dois brasileiros, um colombiano e um mexicano. Além disso, a série é altamente crítica com relação à política antidrogas de Ronald Reagan e George Bush. 

Para Fernando Meirelles – Você já atuou no jornalismo, na TV, na publicidade, no cinema e acaba de dirigir uma ópera. Como foi a experiência nessa nova linguagem?

F.M. Foi um prazer estar na posição de aprendiz, de iniciante, na minha idade. O resultado, de acordo com a crítica especializada, não foi mal. No momento estou participando da criação da abertura da Olimpíada de 2016, com Daniela Thomas e Andrucha Waddington. Mais uma vez como iniciante, só que sem a paz do Theatro da Paz em Belém. Pelo contrário, tiroteio diário. Viver é muito perigoso.

Para Walter Salles – No documentário sobre Jia Zhang-ke, você enfatiza a importância do cineasta para compreendermos as transformações ocorridas na China nas últimas décadas. Em âmbito mundial, o país é nosso maior parceiro comercial. No entanto, a relação é pouco abordada ou tratada como positiva pela grande imprensa do Brasil. O que pensa disso?

W.S. – Jia Zhang-ke é o cineasta que, para mim, melhor entendeu os efeitos da globalização sobre o homem comum. Nenhum país sofreu mudanças tão traumáticas em 20 anos quanto a China, e nenhum cineasta filmou essa terra em transe como Jia. Ele trouxe o cinema de volta para o centro do debate, enquanto seu país passava de uma forma de ortodoxia para outra, a do mercado. Violência, desigualdade de renda. Começaram a surgir na China todos os problemas do capitalismo avançado. Não sei como andam as relações comerciais com o Brasil, mas os desequilíbrios estruturais dos dois países começaram a se assemelhar. É mais um efeito da globalização crescente. I


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