A América Latina não acabou

Espetáculo sobre perda da identidade cultural permanece em cartaz, em São Paulo, até 30 de outubro. Foto: Jonatas Marques
Espetáculo sobre perda da identidade cultural permanece em cartaz, em São Paulo, até 30 de outubro. Foto: Jonatas Marques

Sem motivo aparente, quatro mulheres latino-americanas se reúnem em um restaurante na cidade de Nova York. O espaço é precário, sujo, cheio de bichos. Mas elas não saem dali, estão enclausuradas. Esse é o ambiente de Naturaleza Muerta, peça da Cia La Desdeñosa, que discute a padronização das pessoas no mundo capitalista e a desvalorização da cultura latino-americana.

O ponto de partida para a construção do espetáculo se deu quando o grupo leu o prólogo de Gracias por el Fuego, do uruguaio Mario Benedetti, ao longo do processo de pesquisa teatral América Vizinha, que gerou uma peça de mesmo nome (baseada em texto do também uruguaio Eduardo Galeano). O prólogo chamou atenção por permanecer bastante atual meio século depois de ter sido escrito. No primeiro capítulo do livro, 15 uruguaios estão jantando em um restaurante na 5ª Avenida, em Manhattan. Ali, esquecem de suas origens e perdem as características que os tornam indivíduos.

No entanto, o grupo considerou que o romance de Benedetti trata as mulheres com certo menosprezo e decidiu reescrever o texto, colocando as quatro personagens femininas em um contexto mais favorável, mantendo o mesmo ambiente do prólogo. Seguindo a proposta de explicitar o caráter uniformizador provocado pelo afastamento da própria cultura, elas surgem vestidas da mesma forma e agem sempre da mesma maneira. É evidente a metáfora de uma linha de produção de pessoas.

A cultura hegemônica, das grandes potências capitalistas, é colocada em questão durante o espetáculo. O conflito se dá pela sobreposição das culturas em jogo, que inclui também a eurocêntrica. “Elas são normatizadas pelo lugar no qual estão e negam sua própria identidade”, conta a atriz e dramaturga Tatiana Ribeiro, responsável pelo texto final. Na trama de Benedetti aparece a notícia de que o Uruguai foi devastado por uma catástrofe natural. O boato não se confirma e uma das personagens do livro lamenta, indignada, que o país não sirva nem para ter uma “catástrofe de primeira classe”.

Em Naturaleza Muerta, as personagens mostram o mesmo descaso com o que vem de sua terra natal e só conseguem retomar o apreço pela própria cultura com a vinda de uma nova integrante ao grupo, que faz com que elas enxerguem tudo aquilo que se perdera no procedimento normativo ao qual foram impostas. A chegada da banda Las Manzanas, para uma apresentação no restaurante, é outro ponto crucial que leva a imaginação das mulheres de volta às suas origens. A América Latina, que até então respirava por aparelhos, retorna com força para as personagens.

Curiosamente, o grupo também percebeu, em meio ao processo, que as próprias atrizes sentiam um distanciamento de suas origens. “A falta de reconhecimento da sua própria história perpetua ideias conservadoras, apresentando um povo que se mantém atrasado nas questões sociais, ainda sob uma política patriarcal, machista, misógina, escravocrata, homofóbica e racista”, conclui Tatiana. A padronização acontece de forma minuciosa, empírica, sendo despercebida por muitos. Uma ferramenta conveniente de dominação.

Naturaleza Muerta fica em cartaz até o dia 30 de outubro, às sextas, sábados e domingos, sempre às 20h, no Armazém da Vila Maria Zélia, em São Paulo. A direção é de Rodolfo Amorim. Tatiana Ribeiro, autora do texto, também participa do elenco ao lado de Gabi Costa, Juliana Sanches e Maria Carolina Dressler. A entrada é gratuita e os ingressos devem ser retirados com uma hora de antecedência. No dia 19 de outubro, especialmente, a apresentação virá seguida do debate Ser Latino-americano com o sociólogo e professor Jean Tible e a socióloga Carla Cristina Garcia.


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