“Reduzir maioridade é o limiar do abismo da indiferença”, diz Anistia

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A redução da maioridade penal é o limiar do abismo da indiferença com os jovens. A frase é do diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, Átila Roque, que é o entrevistado da semana para a série de entrevistas sobre a redução da maioridade da Brasileiros.

O diretor de 55 anos classificou como “violenta e deplorável” a manobra do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para que o projeto da redução da maioridade fosse aprovado e avançasse para o Senado. Segundo ele, a sociedade não absorve a informação de que o jovem é vítima porque há uma dissociação da ideia de infância, ancorada no medo e na sensação de impunidade, que desumaniza o adolescente e o atribui a ele o lugar do “mal”.

Diretor executivo da Anistia Internacional, Átila Roque. Foto: AF Rodrigues/Divulgação
O diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, Átila Roque. Foto: AF Rodrigues/Divulgação

A sede da Anistia Internacional no Brasil foi inaugurada em 2012, no Rio de Janeiro. No cargo há três anos, Roque é responsável por uma nova etapa de atuação da entidade, que agora conta com equipe de pesquisa no País. Atuando nas áreas de direitos humanos e segurança pública, o movimento tem divulgado importantes documentos na área, como o relatório “Você Matou Meu Filho! – Homicídios Cometidos pela Polícia Militar no Rio de Janeiro”. Leia a entrevista completa.

Brasileiros – Como o senhor vê a discussão em torno da questão da maioridade penal?
Átila Roque – Colocar como prioridade na agenda de segurança pública a redução da maioridade é um equívoco por muitos aspectos. Primeiro ele se coloca no limiar do abismo da indiferença com os jovens, aqueles que mais precisam da nossa solidariedade. É ele quem sofre todas as principais violações de direitos no Brasil, que é explorado no trabalho, não tem acesso à educação e alimentação adequada e é a principal vítima da violência. De todas as causas de morte de pessoas nessa faixa etária, mais de 50% morre de homicídio.

Deslocamos a discussão do que é de fato nossa prioridade, preservar e garantir os direitos desses indivíduos, e atribuímos a eles o lugar do “mal”. Como se de repente a sociedade se agarrasse a um arquétipo do mal e fizesse com que eles deixem de ser crianças e adolescentes.

O senhor acredita que o projeto tem chance de ser aprovado?
Acho que tem chance de ser aprovado no Senado. Haverá um impasse para a gente reverter esse quadro. Já foi demonstrado o crescimento do engajamento da juventude no esforço da garantia dos direitos e o não abandono e aprisionamento dos adolescentes. No Senado, pela própria natureza da Casa, talvez tenha um pouco de oportunidade para fazer essa discussão distanciada da paixão.

Na Câmara ele não foi discutido, foi levado no grito, inclusive com manobras regimentais violentas e deploráveis por parte do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que manipulou o processo de uma maneira surpreendente para garantir que aquela mesma votação que tinha sido desfavorável menos de 24 horas antes fosse depois aprovada. Então acredito que esse seja o momento dessa discussão ser tratada de outra maneira, o Senado talvez permita um ambiente melhor para esse debate. O que podemos fazer como sociedade é garantir que a gente consiga olhar isso do outro lado, que não seja através da lógica do medo e do preconceito.

Por que acha que isso se tornou um desejo da população?
É preciso reconhecer que a população vive uma enorme frustração em relação ao sistema de justiça, à impunidade, à violência e ao medo. Essa vulnerabilidade leva a sociedade a crer que existe impunidade. A falta de discussão sobre essa situação facilita que você atribua isso ao jovem pobre e negro da periferia, que é o elemento mais vulnerável na violenta, desigual e racista sociedade brasileira.

Ela expressa sentimentos que precisam ser acolhidos, mas de maneira responsável. As vítimas de violência têm esse sentimento de frustração da impunidade com quem comete o ato, mas não estamos falando de deixar o preso impune, temos uma legislação que garante um procedimento para lidar com o jovem que comete infração, mas é preciso deslocar a discussão pra um lugar mais informado.

A população desconhece essa informação de que o jovem que ela está combatendo na verdade é vítima?
Acho que a sociedade não absorve essa informação porque ela passa por um processo de “manada”, em que ela deixa de ver essa criança como ser humano. Há uma situação de dissociação entre essa ideia genérica de que nós temos de infância, criança, adolescente. A reação ancorada na cultura do medo e do sentido de frustração da impunidade acaba dissociando a ideia de adolescente, o desumaniza e o transforma num monstro.

Em discussões sobre o tema, vi deputados dizerem frases como “esses criminosos não são adolescentes, são fascínoras disfarçados de adolescentes”. É assim o processo de desumanização e dissociação da identidade.

Esse processo tira o próprio direito da criança.
Exatamente. A infração é um ato que atinge uma parte muito pequena dos adolescentes, menos de 2% comete crimes. Já entre as causas de óbito de metade dos jovens na faixa de 16 a 18 anos, é o homicídio que lidera. Eles são vítimas.

Há uma dissociação na narrativa construída para justificar a redução que tenta contornar o debate mais informado. Isso está ligado à cultura da punição, que prega que todo mundo fique preso, a ideia de que algumas vidas valem mais do que as outras, e a violência, que é uma indução sutil do extermínio. Um país que mata como o Brasil defender que a melhor forma de resolver o problema da violência é tirar as pessoas da nossa frente… é restringir os direitos do indivíduo antes mesmo que ele possa causar algum mal.

Em um artigo seu, o senhor diz que o sistema de justiça e segurança pública no Brasil é historicamente marcado por uma distribuição seletiva da justiça e da impunidade. O que isso significa?
Como pode um país concordar que há um alto grau de impunidade se ao mesmo tempo temos o 4º maior número de presos do mundo? Uma população prisional acima de 600 mil pessoas. Como se explica a existência de um déficit de direitos tão amplos no Brasil? Existe uma longa tradição de uma sociabilidade atravessada pelo racismo, desigualdade e violência. A desigualdade reforça os valores ancorados no racismo e na violência. Isso é um processo muito sofisticado, é uma produção sistemática e cotidiana de valores que são incorporados pelas próprias pessoas que são vítimas desses valores. A justiça acaba sendo aplicada nessa lógica.

O senhor diz também que o Estado desiste dos jovens e abre mão da própria responsabilidade.
É onde entra a seletividade. Mais de 50% dos homicídios cometidos no Brasil são contra jovens, cerca de 30 mil. Desses, apenas 8% viram processo na justiça. A maior parte permanece impune. Matar é uma coisa muito simples no Brasil. A chance de você não ser penalizado é essa.

Ao mesmo tempo, você tem as prisões lotadas. Existem pessoas lá que cometeram crime contra o patrimônio ou tráfico de drogas. É um sistema que prende mal e é diferente de uma violência letal, que atinge principalmente jovens pobres e negros. O jovem infrator precisa ser tratado por um sistema prisional diferenciado do adulto, no caso do Brasil o sistema socioeducativo. Ele não vai ficar impune. O problema é que a má aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) leva a uma falta de responsabilidade, abandono e aprofundamento da violência histórica e sistemática contra os jovens.


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